sábado, 13 de abril de 2019

SOBRE O INFERNO

«O Inferno são os outros» — diz esse desagradável senhor Sartre no final de Huis Clos, e eu respondo: «eu que o diga!» Hoje estou com um pendor para confissões; vontade de abrir meu peito em praça pública; quem for pessoa discreta e se aborrecer com derrames desses, tenha a bondade de não continuar a ler isto.
Conheci um homem que estava tão apaixonado, tão apaixonado por uma mulher (acho que ela não gostava dele), que uma vez estávamos nós dois num bar e no meio da conversa ele disse fremente:
— Isso é o maior verso da língua portuguesa!
Fiquei pateta, pois não escutara verso nenhum. Ele então pediu silêncio, e que ouvisse. Havia conversas na mesa ao lado, ruídos vários lá dentro, autos e ônibus que passavam, um bonde na outra rua, um violoncelo tocando num rádio qualquer, e lá no finzinho disso, longe, longe, um outro rádio com o samba que mal se podia ouvir e só era reconhecível pelos fragmentos de música que nos chegavam. O maior verso da língua portuguesa estava na letra daquele samba e avisava que «Emília, Emília, Emília, eu não posso mais».
Ele não podia mais. Ninguém pode mais com o inferno de Emília e ninguém sai dele, pois ninguém pode sair do inferno. Estou informado de que alguns moços lêem às vezes o que escrevo, e isso me comove e ao mesmo tempo me dá um senso de responsabilidade. Sim, devo pensar nos moços e cuidar de dizer coisas que não os desorientem. Falar do inferno, por exemplo, é mau. Dante e outros espalharam muitas notícias falsas a respeito, e a pior delas é que para lá vão os culpados.
Na verdade para lá se vai no caminho da maior inocência, assobiando levianamente talvez, escutando os passarinhos que trinam de alegria o coração e com o passo estugado e leve de quem sente um grande prazer em andar. Ah, caminhos de vosso corpo, distante amada. Pensar que neles passearam em tempo antigo minhas mãos, estas mesmas mãos que estão aqui; ah, queridos caminhos, inesquecíveis e divinos, quem diria que me haveríeis de conduzir a esta ilha de silenciosa tortura e atra solidão. Emília, Emília, Emília! Sabei, moços, que há inferno, e não fica longe; é aqui.


Rubem Braga (1949)
De Antologia esquecida na mesa de cabeceira, fls. 80-81.

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