sábado, 23 de fevereiro de 2019

Guerra na Venezuela

Compreendo a inquietação dos pacifistas que não gostariam de guerra em lugar nenhum do mundo. Não sou entusiasta da guerra, de nenhuma guerra. No caso da Venezuela, defendo que Nicolás Maduro cumpra a cláusula democrática e convoque eleições para que a crise do país tenha fim, com o menor número de vítimas inocentes. Guerras são imorais, mas Maduro parece sinalizar ao mundo que só vai fazer as malas e ir embora se correr sangue na Venezuela. Ninguém gostaria de ver  uma guerra na América do Sul. Nem mesmo se fosse guerra justa. Ninguém gostaria de ir combater numa guerra. Temos instinto de sobrevivência. No entanto, se instinto de sobrevivência fosse o único critério para não fazer guerras, hoje estaríamos todos falando alemão. 
Imagem: Reuters

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Aborto


Cientificamente, o aborto corresponde a uma morte provocada de um ser vivo, que será impedido de desenvolver-se na sua plenitude. Por mais que se queira relativizar, este é um fato.
 
Juridicamente, desde a antiguidade, o aborto é tipificado como crime. Só no século passado foram estabelecidos os  limites do risco de morte da mãe e do feto gerado por estupro. Mais recentemente, foram incluídos os casos de encefalia.

 
Moralmente, o aborto tem sido considerado prática condenável, uma vez que vai contra todas as conquistas que a humanidade conseguiu desde que é humanidade. Os humanistas rejeitam o aborto e alegam que estamos no rumo da desumanização crescente. O aborto, segundo esse ponto de vista, fere a dignidade humana e a defesa dos Direitos Humanos. Isto não teria nada a ver com a religião ou igrejas, afirmam eles.

 
Se tenho vida, não seria ético apoiar leis ou fazer campanhas para impedir que outros tenham, argumentam ainda, lembrando que muita gente defende a vida de espécies animais em extinção, mas não dá importância alguma para a morte de fetos humanos. A propósito: os animais, ditos irracionais, preservam a própria espécie. O aborto só existe entre humanos.

 

Para todas as igrejas e crenças religiosas o aborto é um dogma. Na Católica, se há risco de vida entre a grávida e o bebê a determinação é salvar o bebê, se a mãe for batizada. Em razão do batismo, a mãe ganharia o reino de Deus, enquanto o bebê, sem o batismo, vagaria sem luz pela eternidade. A crença espiritual, como se vê, leva a discussão sobre o aborto para uma esfera totalmente irracional.  

 

Já o mundo da razão usa o pragmatismo para aprovar a legalização do aborto. Se a mulher faz aborto legal, no hospital, com assistência médica, tem alta em questão de horas. Em caso do  aborto ilegal podem ocorrer complicações que exigem dias de internação. Ou mesmo a morte. Logo, a conta do aborto clandestino é mais alta. A legalização, em razão dessa conta, entre outros fatores, vem sendo aprovada em plebiscitos até em países católicos como Espanha, Itália e Portugal. 
 
 
 
Existe, no Brasil, uma legislação em vigor e não acredito em mudanças no curto prazo. De acordo com essa legislação, a interrupção de gravidez é admitida em caso de estupro, risco de morte da mãe ou encefalia.
 

A vida e a noite

A vida feliz não se vê com os olhos, disse Santo Agostinho. 
A vida feliz é a que temos até chegar a noite.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Humanismo

Na montanha VII
"Mas, que era afinal o Humanismo? Era o amor aos homens, nada mais, nada menos, e por isso mesmo era também uma política, uma atitude de revolta contra tudo quanto mancha e desonra a ideia de Homem. Tinham censurado ao pai de Settembrini o apreço exagerado da forma; mas ele cultivara a bela forma ùnicamente por amor à dignidade humana, em esplêndida oposição à Idade Média, que vivia não só encarregue à misantropia e à superstição, mas que também tinha sossobrado numa ignomiosa falta de forma. Acima de tudo defendera a Liberdade do Pensamento e o prazer de viver, sustentando que o Céu pertencia aos pardais. Ah, Prometeu! Fora, para ele, o primeiro humanista e idêntico àquele Satã, ao qual Carducci dedicara o seu hino… Oh, se os primos pudessem ouvir como o velho bolonhês maldizia e zombava da sensibilidade cristã do Romantismo! Dos hinos Sacros de Manzoni! Da poesia de sombras e luares do romanticismo, que ele comparava à «pálida monja celeste Luna!» Per Baccho, que prazer sublime, escutar esse homem! E também deveriam ter ouvido Carducci a interpretar Dante: celebrara-o como cidadão de uma metrópole, que defendia contra a ascese e a negação do mundo a força activa que revoluciona e melhora o mundo. Porque, não era a sombra enfermiça e mística de Beatriz que o poeta honrava sob o nome de «donna gentile e pietosa»; pelo contrário, designava assim a sua esposa que no poema representava o princípio do conhecimento das coisas deste Mundo e da actividade na Vida…
Desta maneira, Hans Castorp tinha aprendido muitas coisas sobre Dante, e da melhor das fontes. Não se fiava irrestritamente nestes seus novos conhecimentos, dada a leviandade de quem lhe servia de intermediário. Mesmo assim, valia a pena saber que Dante fora um cidadão activo e lúcido."

MANN, Thomas, "A Montanha Mágica".

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Geração sem pai

Leio muito sobre este assunto e minhas conclusões são as seguintes:
 
1) O pai, o modelo - pai, o pai-chefe, desapareceu. 
 
2)Muita gente comemora e celebra o fim deste modelo de pai com o argumento - que é válido, por sinal - de que isso significa o fim da opressão machista e autoritária. 
 
3) Convém ponderar, no entanto, que a autoridade paterna era um treino para a luta na vida, quando quase todos nós temos de obedecer a um chefe. 
 
4)A verdade é que aprendia-se, com alguma segurança emocional no seio da família, a arte de discordar, de ficar em estado de rebelião permanente e silenciosa.
 
5)Aprendia-se outra coisa também: o mundo tem lugares marcados. 

6)Hoje, livres da figura paterna forte, como estão as novas gerações?  Aparentemente são dóceis, distraídas do seu futuro e crédulas. Acreditam que tudo dará certo. O tempo todo.
 
 
 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Poema



Ás vezes, tento escrever um poema para me opor à vida e ao mundo. E mais nada.

Morreu meu amigo

Morreu meu amigo querido Luiz Alberto Betencourt
A MORTE não se aproxima de trombeta, dizem na Dinamarca. Esta imprevisibilidade força-nos o confronto cru, olhos nos olhos, face a face com a nossa frágil e precária condição. Quem passa por uma situação de perda brusca de alguém próximo ou querido, nunca mais é o mesmo. A vida, o tempo, as coisas ganham perspectiva e profundidade. A morte passa a estar presente em todos os momentos - vigilante, companheira. Para uns, o tempo começa a voar, parece escapar-se velozmente entre as mãos. Para outros, a vida torna-se lenta, insuportavelmente previsível, vazia e vagarosa. Á medida que o tempo passa, ganhamos uma nova noção de normalidade. Que será, inevitavelmente, tão efémera como a anterior. A morte faz parte da vida, dizemo-nos como consolo. Acontece que saber da proximidade da morte é o mais duro e doloroso exercício que, neste mundo, seremos todos forçados a enfrentar. É a experiência mais devastadora por que podemos passar. A morte é a derrapagem final e talvez não tenha mais segredos a revelar-nos do que a vida, como escreveu Flaubert. Ainda assim, continua a soar-nos como injusta e intolerável. Por ser injusta e intolerável. Choca-nos e deixa-nos incrédulos e impotentes.  Adeus querido Luizinho! Foi um privilégio contar com sua amizade!  

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Teatro imortal SHAKESPEARE


TEATRO
"CENA II

Roma – Fórum

Entram BRUTO e CÁSSIO e uma chusma de cidadãos.

CIDADÃO

Queremos que nos dêem explicações. Queremos explicações!

BRUTO

Então, segui-me e concedei-me audiência, amigos. – Cássio, ide por outra rua; repartiremos o povo entre nós. – Aqueles que me quiserem ouvir falar, fiquem aqui; os que quiserem ouvir falar Cássio, sigam-no. Públicas satisfações da morte de César hão-de ser-vos dadas.

1.º CIDADÃO

Eu quero ouvir falar Bruto.

2.º CIDADÃO

Eu ouvirei Cássio. Comparemos os seus argumentos quando os tivermos ouvido aos dois. (Cássio sai, seguido de alguns cidadãos. Bruto sobe aos Rostros.)

3.º CIDADÃO

O nobre Bruto vai falar. Silêncio!

BRUTO

Tende paciência até ao fim. Romanos, compatriotas, amigos, atendei a minha causa e conservai-vos em silêncio a fim de melhor me ouvirdes. Crede na minha honra e respeitai-a, se quiserdes crer-me. Julgai-me segundo a vossa sapiência, despertai os vossos sentidos a fim de que vos seja possível julgar-me conscienciosamente. Se há alguém nesta assembleia amigo de César, dir-lhe-ei que por mais amigo que dele fosse, não era capaz de ter por César o amor que Bruto lhe dedicava. Se esse amigo perguntar porque foi então que Bruto se revoltou contra César, eis qual será a minha resposta: Eu era amigo de César, mas era muito mais amigo de Roma. Preferiríeis que César vivesse e morrêssemos nós todos escravos, ou que César morresse para nós vivermos como homens livres? César era meu amigo: eu choro-o. Ele foi feliz, folgo com isso. Foi valoroso, presto-lhe as minhas honras. Mas, como era ambicioso, eu matei-o. Eis lágrimas para o chorar, porque o amava; alegria pela sua fortuna, veneração pelo seu valor, e a morte pela sua ambição! Qual é aqui o homem assaz vil que queira ser escravo? Se houver um, que fale, pois eu ofendi-o! Qual é aqui o homem assaz bárbaro para não querer ser romano? Se houver um, que fale, pois eu ofendi-o! Qual é aqui o homem assaz desprezível para não amar a pátria? Se houver um, que fale, pois eu ofendi-o! Espero que me respondam.

CIDADÃOS (falando todos ao mesmo tempo)

Tal homem não existe, Bruto, não existe!




BRUTO

Então, não ofendi ninguém. Não fiz a César senão o que vós teríeis feito a Bruto. As razões da sua morte estão inscritas no Capitólio. Elas não lhe atenuam a glória no que merecia louvores, nem lhe exageram as culpas pelas quais sofreu a morte. (Entram António e outros com o cadáver de César.) Aqui vem o corpo de César, pranteado por Marco António. Sem ter tomado parte nenhuma na conjura, dela beneficiará, terá um lugar na República. Qual de vós não lucrará assim com esta morte? Retiro-me, afirmando o seguinte: «Matei o meu melhor amigo por amor de Roma; conservo o punhal que o matou para mim próprio, no caso do meu país querer dispor da minha vida.»

CIDADÃOS

Viva Bruto! Viva Bruto!

1.º CIDADÃO

Levemo-lo em triunfo até sua casa!

2.º CIDADÃO

Erijamos-lhe uma estátua no meio de todos os seus antepassados!

3.º CIDADÃO

Que seja César!

4.º CIDADÃO

As melhores virtudes de César vão ser coroadas em Bruto.

1.º CIDADÃO

Conduzamo-lo a casa com aplausos e aclamações.

BRUTO

Compatriotas…

2.º CIDADÃO

Silêncio! Silêncio! Bruto vai falar.

1.º CIDADÃO

Silêncio!

BRUTO

Meus bons compatriotas, deixai que eu parta só; e por consideração para comigo, ficai aqui com António. Prestai homenagem ao cadáver de César e honrai o discurso que António vai pronunciar, celebrando a glória de César, como por nós foi autorizado a fazer. Suplico-vos que ninguém daqui saia, excepto eu, até que António acabe de falar. (Sai.)

1.º CIDADÃO

Silêncio! Ouçamos Marco António!

3.º CIDADÃO

Que suba à tribuna. Ouvi-lo-emos. – Nobre António, subi.

ANTÓNIO

Fico-vos muito obrigado por me ouvirdes, em consideração a Bruto. (Sobe.)

4.º CIDADÃO

Que diz ele de Bruto?

3.º CIDADÃO

Diz que nos está muito reconhecido por o ouvirmos, em consideração a Bruto.

4.º CIDADÃO

Será bom que não diga uma única palavra má relativamente a Bruto…

1.º CIDADÃO

César era um tirano.

3.º CIDADÃO

Não há dúvida, e foi uma felicidade para nós que Roma se visse livre dele.

2.º CIDADÃO

Silêncio! Ouçamos o que António poderá dizer.

ANTÓNIO

Nobres romanos…

CIDADÃOS

Silêncio! Escutem!...

ANTÓNIO

Amigos, romanos, compatriotas, prestai-me atenção. Vim para sepultar César, não para o louvar. O mal que os homens fazem vive depois deles. O bem que puderam fazer permanece quase sempre enterrado com os seus ossos. Que seja assim para César. O nobre Bruto disse-vos que César era um ambicioso. A ser isso verdade, a culpa era grave, e César dolorosamente a expiou. Com a autorização de Bruto e dos outros (porque Bruto é um homem honrado, assim como todos os outros são honrados) venho falar nos funerais de César. Ele era, para mim, um amigo fiel e justo. Mas Bruto diz que ele era ambicioso, e Bruto é um homem honrado. Ele trouxe a Roma numerosos cativos, cujos resgates encheram os cofres públicos. Era César ambicioso por isso? Quando o pobre gemeu, César chorou. A ambição deveria ser dum estofo mais rude. Mas Bruto diz que ele era um ambicioso, e Bruto é um de bem. Todos vós viste, nas Lupercais, que três vezes uma coroa real lhe foi apresentada, e que três vezes ele a recusou. Era isso ambição? Contudo, Bruto diz que ele era um ambicioso, e não há dúvida que Bruto é honesto. Eu não falo para reprovar o que Bruto disse; mas estou aqui para dizer o que sei. Todos vós o amáveis antigamente, e não era sem motivo. Porque, pois, não o pranteais hoje? O que é que vos impede disso? Ó razão, onde estás tu, razão? Refugiaste-te nas brutas feras e os homens ficaram sem ti! Sede indulgentes para comigo. O meu coração está ali no esquife de César; e vejo-me obrigado a calar-me até recuperar ânimo.

1.º CIDADÃO

Parece-me que tem muita razão no que diz.

2.º CIDADÃO

Se bem considerares a coisa, verás que César foi vítima duma grande injustiça.

3.º CIDADÃO

Pensais como eu, senhores! Tenho medo de que venha outro pior do que ele.

4.º CIDADÃO

Tomastes bem sentido nas palavras de António? César não quis aceitar a coroa; portanto é certo que ele não era ambicioso.

1.º CIDADÃO

Se isso se provasse, alguém o havia de pagar caro!

2.º CIDADÃO

Pobre alma! Tem os olhos vermelhos como fogo por tanto chorar!

3.º CIDADÃO

Em Roma não há outro homem mais nobre do que António.

4.º CIDADÃO

Atenção! Ele vai começar outra vez a falar.

ANTÓNIO

Ontem, ainda a palavra de César fazia tremer o mundo e agora ei-lo por terra e ninguém, por mais humilde que seja, lhe paga o seu tributo de respeito. Ó meus amigos! Se eu estivesse disposto a excitar os vossos corações e os vossos espíritos à rebelião e à cólera, teria de ser injusto para com Bruto e para com Cássio, que, todos o sabeis, são homens honrados. Não quero; prefiro antes ser injusto para com o morto, injusto para comigo mesmo, injusto para com todos vós, do que sê-lo para com homens tão honrados. Mas eis aqui um pergaminho, com o selo de César, que encontrei no seu quarto. É o testamento dele. Se o povo conhecesse este testamento, que não faço tenção de ler, iria beijar as feridas do corpo de César, molhar o lenço no seu sangue sagrado, mendigaria um dos seus cabelos, para guardá-lo como a essas relíquias que à hora da morte se mencionam entre as últimas vontades, e que são transmitidas como um legado precioso à posteridade!

1.º CIDADÃO

Queremos ouvir o testamento! Lede-o, Marco António!

CIDADÃOS

O testamento! O testamento! Queremos ouvir o testamento de César!

ANTÓNIO

Tende paciência, nobres amigos; não devo lê-lo. Não convém que fiqueis sabendo quanto ele vos amava. Vós não sois de pau, vós não sois de pedra, vós sois homens; e, sendo homens, se ouvísseis ler o testamento de César, isso inflamar-vos-ia e tornar-vos-ias furiosos. Não convém que fiqueis sabendo que sois seus herdeiros, porque, se o soubésseis, o que viria a suceder?

4.º CIDADÃO

Lede o testamento! Queremos ouvi-lo, António! Deveis ler-nos o testamento, o testamento de César!

ANTÓNIO

Sossegai! Quereis esperar um momento? Fui mais longe do que queria, ao falar-vos. Fui injusto – e disso tenho medo – para com os homens honrados que, com seus punhais, assassinaram César. Sim, tenho medo disso.

4º. CIDADÃO

Homens honrados! Traidores é o que eles são…

CIDADÃOS

O testamento! O testamento!

2.º CIDADÃO

São celerados! Assassinos! O testamento! Lede o testamento!

ANTÓNIO

Quereis, pois obrigar-me a ler o testamento? Fazei um círculo em redor do cadáver de César para que eu possa mostrar-vos aquele que fez este testamento. Devo descer? Quereis dar-me licença?

1.º CIDADÃO

Saltai!

2.º CIDADÃO

Descei! (António desce da tribuna.)

3.º CIDADÃO

Tendes a nossa autorização.

4.º CIDADÃO

Ponhamo-nos em círculo. Rodeemos o cadáver.

1.º CIDADÃO

Afastemo-nos do esquife, desviemo-nos do cadáver.

2.º CIDADÃO

Dai lugar a António, ao nobilíssimo António.

ANTÓNIO

Não me aperteis tanto! Recuai um pouco.

CIDADÃOS

Para trás! Para trás! Lugar a António.

ANTÓNIO

Se tendes lágrimas, preparai-vos para derramá-las. Todos vós conheceis este manto. Lembro-me do dia em que pela primeira vez César o envergou; foi por uma tarde de Verão, na sua tenda, quando venceu os Nérvios. Olhai! Neste ponto foi atravessado pelo punhal de Cássio. Vede que rasgão lhe fez neste ponto o invejoso Casca. Foi aqui que bruto, o bem-amado, o feriu, e quando arrancou o maldito ferro, vede com que rapidez o sangue de César espadanou, golfando pelas veias fora para se certificar se era ou não Bruto, bem o sabeis, era o génio familiar de César! Só vós, ó deuses, sabeis com que ternura César o amava! Esta punhalada foi de todas a mais cruel. Quando o nobre César o viu feri-lo, a ingratidão, mais poderosa do que o ferro dos traidores, aniquilou-o completamente! Então, o seu magnânimo coração despedaçou-se, e, encobrindo o rosto com este manto, o grande César caiu ao pé da estátua de Pompeu, toda banhada de sangue. Que queda, meus compatriotas! Eu, vós, nós, todos, caímos com ele, enquanto a sanguinolenta traição cantou vitória sobre nós! Agora chorais! Bem vejo; sentis o poder da compaixão; são lágrimas generosas, essas. Ó almas cheias de bondade, chorais somente porque vedes o manto despedaçado do nosso César? Olhai! Olhai todos para aqui! Vede-o! É ele desfigurado; foi neste estado que os traidores o puseram!

1.º CIDADÃO

Ó lamentável espectáculo!

2.º CIDADÃO

Ó nobre César!

3.º CIDADÃO

Ó dia desditoso!

4.º CIDADÃO

Ó traidores! Ó celerados!

1.º CIDADÃO

Ó sangrentíssimo espectáculo!

2.º CIDADÃO

Nós o vingaremos! Vingança! Corramos! Para a frente! Investiguemos! Queimemos! Incendiaremos! Matemos! Massacremos! Que não viva mais um só dos traidores!

ANTÓNIO

Esperai, concidadãos!

1.º CIDADÃO

Silêncio! Ouçamos o nobre António!

2.º CIDADÃO

Não só o ouviremos, mas segui-lo-emos e morreremos com ele.

ANTÓNIO

Meus bons amigos, meus ternos amigos! Não seja eu quem vos excite a uma tão repentina revolta! Aqueles que praticaram este acto são pessoas dignas, se bem que eu não possa adivinhar as razões particulares que os incitaram a proceder assim! São homens ponderados, dignos, que, sem dúvida alguma, vos hão-de dar explicações. Eu não vim aqui, meus amigos, para captar os vossos corações. Eu não sou um orador como Bruto, mas, todos o sabeis, um homem simples, franco, que é amigo dos seus amigos; eles próprios não o ignoram, esses que publicamente me deram licença para falar dele. Não tenho inteligência, nem palavras, nem nobreza, nem gesto, nem expressão, nem valor oratório para estimular o sangue dos homens. Contento-me em falar com toda a franqueza; não vos dei novidades; mostro as feridas do generoso César, pobres, muito pobres bocas mudas, e peço-lhes que falem por mim. Mas se eu fosse Bruto e Bruto fosse António, teríeis aqui um António que desencadearia a vossa cólera, que daria a cada ferida de César uma voz capaz de comover as pedras de Roma e de fazer com que se erguessem para a revolta.

CIDADÃOS

Revoltar-nos-emos!




1.º CIDADÃO

Queimaremos a casa de Bruto!

3.º CIDADÃO

Partamos! Vamos à procura dos conspiradores!

ANTÓNIO

Tende paciência, compatriotas; ouvi-me ainda.

CIDADÃOS

Silêncio! Ouçamos António, o muito nobre António!

ANTÓNIO

Amigos! O que ides fazer não o sabeis ainda. Em que foi que César mereceu tanto amor? Ai! Não o sabeis? É preciso pois que eu vo-lo diga. Esquecestes o testamento de que vos falei há pouco?

CIDADÃOS

É verdade! O testamento! Detenham-nos e ouçamos o testamento!

ANTÓNIO

Eis esse testamento, selado pela mão de César. Deixa a cada cidadão romano, a cada simples particular, setenta e cinco dracmas.

2.º CIDADÃO

Ó nobilíssimo César! Vingaremos a tua morte!

3.º CIDADÃO

Ó real César!

ANTÓNIO

Ouvi-me com paciência.

CIDADÃOS

Silêncio!

ANTÓNIO

Além disso, lega-vos todos os seus recreios particulares, pomares, vergéis, jardins recentemente plantados na margem do Tibre. Deixa-vos isto para sempre, a vós e aos vossos herdeiros, como lugares públicos para gozo e distracção vossa! Ah! César era assim. Quando tereis vós outro parecido?

1.º CIDADÃO

Nunca mais! Nunca mais! Vamos! Partamos! Partamos! Queimemos em sagrado o seu cadáver e com os tições deitemos fogo às casas dos traidores. Levantemos o corpo!

2.º CIDADÃO

Vamos buscar lume!

3.º CIDADÃO

Despedacemos os bancos!
4.º CIDADÃO

Quebremos as cadeiras, as janelas, tudo! (Saem com o cadáver.)

ANTÓNIO

Deixemos agora caminhar as coisas. Ó mal! Tu puseste-te a caminho, segue a direto que quisseres. (Entra o Servo.) Então, amigo, que há?

SERVO

Senhor, Octávio já está em Roma.

ANTÓNIO

Onde?

SERVO

Ele e Lépido estão em casa de César.

ANTÓNIO

Vou imediatamente visitá-lo. Chega muito a propósito. A Fortuna está a nosso favor e com tal disposição de ânimo que nos dará tudo.

SERVO

Ouvi-lhe dizer que Bruto e Cássio tinham como loucos, fugido a toda a brida dos seus cavalos pelas portas de Roma.

ANTÓNIO

Tiveram, sem dúvida, algum aviso da maneira como eu amotinei a plebe. Leva-me junto de Octávio." (Saem.) (…)

SHAKESPEARE, William (trad. DR. Domingos Ramos), Júlio César, Porto, Lello & Irmão – Editores, 1988, p.p.101-118.

 

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

Um dos mais belos sonetos de todos os tempos

SONETO
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo: - Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta vida.

Luís de Camões

Cecília Meireles

 
"Nasci no Rio de Janeiro, três meses depois da morte do meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas ao mesmo tempo me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno. Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento da minha personalidade."
Cecília Meireles