quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Envelhecer, como a idade pesa!

 
Assisto, mudo, enquanto eles se divertem. Talvez mais do que aquilo que dizem, é o que insinuam que magoa, e o paternalismo ácido com que dão a entender. Algumas vezes percebe-se que falam disto entre eles quando não estou, que se divertem à minha custa, que usam histórias pessoais, episódios privados, informações confidenciais se ainda houvesse confidências. Falam disto como se eu tivesse prestado provas públicas e chumbado gaguejando, como se isto tivesse acontecido para seu (deles) divertimento e proveito. Atiçam, atacam, adjectivam.
 
A ideia é sempre uma variante sobre a minha ingenuidade, jogada contra o cinismo normal de quem saia de casa em dois mil e oito. Discutem cochichando as «vantagens comparativas», há quem ria e quem suspire e pegam no meu nome como se fosse um trapo pela lama. Dizem que só eu é que não vejo a graça que isto tem, porque sou «doutro tempo» e quis avançar sem ter pé por um rio agreste, armado de «ideias» que são ideias imbecis, gastas, desconformes ao mundo. Explicam que o meu «atomismo» chega a ser de gargalhada numa sociedade que funciona em grupos, «there is a such a thing as a society», e eu com umas metáforas pífias no meio da multidão.
 
Riem, e depois riem para dentro, e o álcool sai pelas narinas, criam diminutivos, alcunhas, designações chocarreiras. Elogiam-me, como se dá um passo atrás na dança, para depois virarem o elogio contra mim, virtudes inúteis e grotescas quando ninguém precisa delas, ninguém precisa a tal ponto que deixam de ser virtudes, são sinais de nascença, que para nada servem e talvez se arranquem, nem dói muito. Utilizam os verbos no pretérito, fazem perguntas retóricas, dizem «fazias cá alguma falta» porque lhes sirvo de momo, as coisas em que esta pessoa acredita, nadar em oceanos sem sequer saber nadar em riachos, confiado na compaixão e outras estupidezes, não te vás embora que queremos rir mais um bocadinho...
 
Umas vezes usam frases cunhadas em conversas anteriores, em que eu não estava, de que eu não soube, mas em que fui dado como exemplo, dissecado nas patetices que fiz e faço e apontado como caso de loucos, «eu não estou doudo», como é que esta pessoa imaginou que alguma vez, este idiota, e serenamente acrescentam que a legalidade está reposta, que agora as coisas são como deviam, afastado o erro estatístico que fui, o motivo de gozo, o caso nunca visto.


Que eu tenha coragem de sair de casa, isso os espanta, quando estive lá tão bem durante tanto tempo, metido entre fofos lençóis, «o menino dorme, tudo o mais acabou», para quê de cara lavada sair à rua quando ainda não houve anedota melhor e as pessoas se lembram da penúltima, tudo o que vales reduzido a um facto que te reduz, a tua insignificância, a tua mania das grandezas quando és nulidade, e um tão britânico súbdito, tão atento ao ridículo, sem se aperceber do ridículo em que caía, de que não há vida privada mas vida de botequim, em que todos os teus «triunfos e encantos» são desfeitos em nada por uma frase, por um gracejo, pela simples realidade soberana dos que riem e dos que choram, a imensa alegria dos primeiros com a imensa, oh que palavra, desgraça dos segundos...
 
Há quem morra de pé e há quem morra de rastos e há quem nunca morra, pelo menos aqui, havemos de morrer mas vêm outros, que tomam os nossos lugares, de ti fazemos memória se o teu nome ainda durar, improvável isso, tudo o que construíres de dia será desfeito de noite, tens direito também a uma penélope, mas ver sem tocar, ver sem tocar, quando não houver quem dance ainda há a dança e o nosso riso e escárnio porque tu quiseste entrar onde não pertences, e o teu fracasso é de entre todos os folguedos o que mais diverte.
 
Vai embora, com teus aforismos e ameaças, boa noite querido príncipe que assim te julgas ainda, sangue azul no teu sangue escarlate, enobrecido talvez pela queda do cavalo, boa noite, boa noite doce príncipe, sem tu perderes como saberíamos nós que somos os vitoriosos?

sábado, 18 de janeiro de 2020

Feminismo

Feminismo: um nome ainda novo

1- Os primeiros passos do feminismo foram dados no sentido de se reivindicar a igualdade formal entre homens e mulheres. Caminho aparentemente óbvio, sobretudo na época em que nasceu (o período da Revolução Francesa e das suas proclamações igualitárias), mas que a breve trecho se veio a revelar particularmente sinuoso. Três exemplos demonstram como este foi, historicamente, um percurso minado.
 
Olympe de Gouges é o primeiro caso. Glosando a Carta dos Direitos do Homem e do Cidadão, Olympe escreve, em 1791, uma Carta dos Direitos da Mulher e da Cidadã, na qual defende a igualdade entre homens e mulheres no domínio público e privado. A ousadia da francesa foi severamente punida: a 3 de Novembro de 1793, Olympe de Gouge é guilhotinada. A República proclamava a universalidade dos direitos mas não podia tolerar que as mulheres deles usufruíssem.
 
Durante o século XIX, a revolução industrial, com o consequente abandono dos campos e o crescimento do proletariado, empurrou as mulheres para o mercado de trabalho. É no contexto das duras condições de trabalho existentes nesta altura que vamos encontrar o segundo exemplo. A 8 de Março de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica de Nova Iorque entram em greve, exigindo a redução do horário de 16 para 10 horas. Recebiam, pelo mesmo trabalho, um terço do ordenado dos homens. Fecham-se na fábrica, onde entretanto é declarado um incêndio. Cento e vinte e nove tecelãs morrem queimadas. A carga dramática do acontecimento fez com que, alguns anos depois, a data fosse escolhida para comemorar o Dia Internacional da Mulher.
 
Nos primeiros anos, a comemoração serviu, essencialmente, para se reclamar o direito de voto e de participação das mulheres nas instâncias públicas. Esta atitude política, que ficou na história com o nome de «sufragismo», foi dando lentamente os seus frutos. Muito lentamente, por vezes. Se em alguns países as mulheres acedem com razoável rapidez ao voto – Nova Zelândia (1893), Austrália (1901), Finlândia (1906), Noruega (1913), Dinamarca e Islândia (1915), Rússia e Holanda (1917) – noutros lugares a caminhada foi mais longa. Em Itália e França o voto feminino chega em 1945 e na Suíça em 1971.
 
Em vários países, como Portugal, o sufragismo também fez o seu caminho. Chega-se assim ao terceiro exemplo, o exemplo caseiro de como o trajeto da paridade não foi (não é) fácil nem consentido. Em 1911, Carolina Beatriz Ângelo, escudando-se numa leitura alternativa da Constituição, que permitia o voto aos «cidadãos portugueses com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família», invoca a sua condição de «chefe de família» e obriga os tribunais a deixarem-na votar.
 
A médica votou mas o gesto acabou por não se multiplicar. Em 1918, ainda durante a I República, a Constituição é alterada de modo a que apenas fossem eleitores os «cidadãos do sexo masculino». Apesar das sucessivas aberturas que a lei foi proporcionando, só na sequência da nova conjuntura proveniente do 25 de Abril de 1974, homens e mulheres adquiriram iguais direitos políticos.
 
2. Após a segunda guerra mundial, o feminismo ressurgiu com vigor redobrado, sob a influência de obras como O segundo sexo (1949) da francesa Simone de Beauvoir e A mística feminina (1963) da americana Betty Friedan. Nesta segunda vaga do feminismo, consolidada no contexto das fortes mutações políticas e culturais que atravessam os anos sessenta e setenta, já não se tratava de conquistar direitos civis para as mulheres, mas antes de descrever a sua condição de oprimidas pela cultura masculina, de revelar os mecanismos psicossociais dessa marginalização e de projectar estratégias capazes de proporcionar às mulheres uma libertação integral, que incluísse também o corpo e os desejos. A interrupção voluntária da gravidez, a radical igualdade nos salários e o acesso a postos de responsabilidade são outras das reivindicações do novo movimento feminista.
 
Muitos dirão que estas batalhas, com quase meio século, estão hoje ultrapassadas. Talvez não seja bem assim. As múltiplas questões ligadas aos direitos sexuais e reprodutivos, que afetam predominantemente as mulheres, continuam a encontrar resistências a vários níveis.
 
No plano laboral, o género feminino continua a ser descriminado: o Lobby Europeu das Mulheres alertava, em 2001, para o facto de, na União Europeia, elas ganharem em média 76% do salário pago aos homens pelo mesmo trabalho. Ao nível dos processos de decisão, subsiste uma série de «telhados de vidro» que impede o acesso feminino aos lugares de maior poder. No domínio da conciliação entre vida profissional e vida familiar, a mentalidade dominante ainda estipula que sejam elas a assumir o grosso das tarefas domésticas, situação confirmada num estudo recente, coordenado por Lígia Amâncio, que concluiu que as mulheres trabalham em casa, por semana, mais 19 horas do que os homens. Daí resulta uma maior dificuldade em dispor de tempo para dedicar ao trabalho, à formação, ao estudo ou ao lazer.
 
Este olhar impressivo mostra como, apesar dos constantes anátemas, o ideário feminista permanece atual. Com outros conteúdos, sem dúvida, mas com a mesma motivação: a tal que era proclamada pelos assassinos de Olympe de Gouges.
 
Texto do blog Passado/Presente - a construção da memória contemporânea 
 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

A elegância é eterna, por João Pereira Coutinho

Fazer dieta é uma declaração de guerra à nossa humanidade imperfeita e mortal    
 
Estou em dieta há dois meses. A minha vida já não faz sentido. No início, tomado por um heroísmo absurdo, fiz um corte abrupto em certos venenos corporais. Passou uma semana. Passaram duas.
Na terceira, como acontece a certos mutilados de guerra, comecei a sentir as minhas dores fantasmagóricas nas pupilas gustativas. O vinho. 
O chocolate. Os doces. Sonhava com eles, acordava sem eles.
É este o principal problema da dieta: podemos nos afastar das tentações, mas as tentações, em representação mental, maquinal, infernal, nunca se afastam de nós.
Ilustração de quatro pessoas nuas com sobrepeso em vermelho e preto. A primeira é uma pessoa de perfil. A segunda está de frente, com o rosto virado para o lado e uma mão no ombro. A terceira está deitada se servindo com um cacho de uvas. A quarta é uma pessoa sentada com a cabeça apoiada em uma das mãos
Angelo Abu/Folhapress
Caminhando por uma rua de Lisboa, passei por uma pastelaria. Parei dois segundos, só para respirar aquele ar —uma mistura de ovos, açúcar, frutas secas. Continuei a minha caminhada, chorando como um órfão de Dickens. Fazer dieta em certos países, como na Inglaterra, pode ser uma bênção. Em Portugal, ou no Brasil, é uma mortificação pessoal.
E para que tanto esforço? Por que motivo desprezamos tão intensamente a figura simpática do bom velho gordo?
A história é antiga, explica Christopher E. Forth em obra que me acompanha durante o exílio. Intitula-se “Fat: A Cultural History of the Stuff of Life” e serve para acabar com a ilusão de que gordura é formosura. Ou, pelo menos, foi um dia.
Nunca foi. Os gordos têm vários séculos de cultura a conspirar contra eles. Para os gregos, que legaram ao mundo as formas corporais perfeitas que ainda hoje são padrão de beleza, o problema da gordura não era apenas estético; era intelectual. Quem se deixa dominar pelos apetites abandona a luz cristalina da razão.
A ligação primordial estava feita entre possuir um corpo generoso e ser comandado por uma cabeça bestial, no sentido animalesco da palavra.
Com o cristianismo, pouco mudou. Como adorar a Deus e, ao mesmo tempo, adorar os prazeres materiais que existem cá em baixo?
São incontáveis os pais da Igreja para quem um corpo rotundo asfixiava literalmente a alma, impedindo o crente de se elevar até aos céus. Jesus, que se saiba, era magro. As representações que nos chegaram do filho de Deus denunciam uma elegância que, antes de ser física, é sobretudo metafísica.
Poderia pensar-se que, depois da Idade Média, a guerra ao corpo abrandaria. E que a modernidade, com o aburguesamento correspondente, revalorizasse as formas circulares.
O problema é que o Renascimento é assim chamado por procurar reviver os valores clássicos. Na estatuária, na pintura, na filosofia. E na desconfiança espartana perante os gordos. Na sua “A Cidade do Sol”, Tommaso Campanella propunha a eliminação da espécie, seguindo as práticas viris e militares da antiga Esparta.
Mas foi nos séculos 18 e 19 que a hostilidade ao gordo se cristalizou. Sobretudo por contraposição aos ideais de beleza de povos não ocidentais (e não brancos) que passaram a ocupar a atenção, e a inquietação, do homem ocidental.
Na África ou na Ásia, os corpos generosos eram a prova evidente de que o gosto não era uniforme. Mas os ocidentais, sem surpresas, não aplaudiram esse pluralismo estético.
Com a soberba própria dos elegantes, trataram de ver naquelas proporções um sinal de barbarismo e, palavra terrível, uma ameaça de degeneração para a raça branca. O resto da história é tragicamente conhecido.
Hoje, a guerra à gordura pode ser justificada com critérios mais científicos. A saúde, sim, sempre a saúde, essa deusa pagã perante a qual todos nos curvamos.
Mas o livro notável de Christopher E. Forth serve para vermos como a lipofobia (o medo da gordura) participa de uma raiz comum: uma vontade utópica de transcender a matéria e alcançar uma espécie de perfeição etérea, acima das contingências. Sempre assim foi.
A dieta, nesse sentido, não é uma declaração de guerra à gordura. É uma declaração de guerra à nossa humanidade imperfeita e mortal. 
Valerá a pena?
No livro, Forth revisita as hilariantes discussões dos doutores da Igreja sobre o estado do corpo no momento da ressurreição. Quando isso acontecer, teremos a mesma fisionomia que tivemos em vida?
Ou haverá, digamos, uma lipoaspiração celestial para que possamos enfrentar a eternidade mais leves e sorridentes?
Santo Agostinho tranquilizou os crentes: quando entrarmos no paraíso, teremos o corpo que sempre desejamos ter.
Obrigado, meu sábio de Hipona. Era só o que eu precisava escutar para entrar na pastelaria.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Viva a Liberdade e a Irreverência!


Globo de Ouro: Ricky Gervais mostra ao mundo o que significa liberdade e irreverência  

Desde que John Lennon,há 50 anos,mandou a família real balançar as joias nunca tanta gente endinheirada e privilegiada foi obrigada,em solenidade pública,a sorrir c/tanto constrangimento como aconteceu no Globo de Ouro/2020. O discurso do apresentador Ricky Gervais foi demolidor. Desde que John Lennon,há 50 anos,mandou a família real balançar as joias nunca tanta gente endinheirada e privilegiada foi obrigada,em solenidade pública,a sorrir c/tanto constrangimento como aconteceu no Globo de Ouro/2020. O discurso do apresentador Ricky Gervais foi demolidor. Desde que John Lennon,há 50 anos,mandou a família real balançar as joias nunca tanta gente endinheirada e privilegiada foi obrigada,em solenidade pública,a sorrir c/tanto constrangimento como aconteceu no Globo de Ouro/2020. O discurso do apresentador Ricky Gervais foi demolidor.
Há muitos e muitos anos anos não se via nada igual. Desde que John Lennon, há 50 anos, mandou a família real balançar as joias - em lugar de bater palmas - nunca tanta gente endinheirada e privilegiada foi obrigada, em solenidade pública, a sorrir amarelo com tamanho constrangimento como aconteceu na edição do Globo de Ouro na madrugada deste dia 6 de janeiro de 2020.

O discurso do apresentador Ricky Gervais foi demolidor. Valeu demais ver alguém com coragem e talento, na maior rede de televisão do planeta, mostrar ao mundo o que significa de fato uma mente livre e irreverente. Achei sensacional. Veja no link: Ricky Gervais kicks off The #GoldenGlobes. pic.twitter.com/ZSdqiWMudx

As celebridades mais poderosas do planeta, que nas noites de gala fazem discursos políticos foram obrigadas a engolir o “cala-boca” de Ricky Gervais. Ele foi duro: vocês não sabem de nada, não conhecem a vida real, não estudaram e não têm nada a dizer ao povo. “Doem dinheiro para a Austrália, embebedem-se e… desapareçam!” ele arrematou, ao fim da cerimônia.

Antes, no monólogo inicial de oito minutos, o apresentador não deixou ninguém esquecer os crimes de pedofilia da Igreja Católica. “Foi um grande ano para filmes sobre pedófilos: ‘Surviving  Kelly’, o ‘Leaving Neverland’ e o ‘Two Popes’, afirmou. Houve farpas à longa duração do filme “Irishman”, comparações entre o ator Joe Pesci e o Baby Yoda, provocações à Netflix, e tiradas contra o politicamente correro.

“A Hollywood Foreign Press é muito racista. Íamos fazer um in memoriam, mas depois vi a lista dos que morreram, não era diversificada o suficiente, basicamente era tudo branco, então disse-lhes que não deviam fazer”, ironizou.

Ao lembrar o suposto suicídio de Jeffrey Epstein, o multimilionário norte-americano, envolvido numa rede de pedofilia, o apresentador olhou a plateia e provocou: “Eu sei que é vosso amigo, mas eu não quero saber”. A resposta foi um “oooh” constrangido e desconforto geral, mas não houve resposta por uma razão que me parece clara: tudo que Ricky Gervais disse é verdade.