terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Só às vezes

Só às vezes
Quanto tempo mais. Já não muito.
Porquê tanto tempo já. Não sei porquê.
Não terminará nunca. Não perguntes.
Nunca terminará. Para quê perguntar.

Falo sempre contigo,
mas já não com amabilidade,
tenho demasiadas perguntas.
Também sobre o teu paradeiro.
E onde estiveste nos anos comuns.
Com quem falaste,
quem estrangulaste, a quem pediste,
a quem gritaste.

Eu estive à tua disposição.
muitas vezes tive medo, mas expulsava
os meus receios com o amor, nem sequer
me atemorizei nas tuas mãos,
só às vezes, e sempre demasiado tarde.

Ingeborg Bachmann (1926-1973), da colectânea póstuma Ich weiβ keine bessere Welt / Não sei de nenhum mundo melhor (2000).

Sentença final


Nunca estive em casa. Trabalhar fora é ficar fora da rotina diária. Minha vida sempre foi fora, desde o início da adolescência, mas agora estou muito tempo em casa.  Em casa, posso fazer o que quiser, mas não acontece nada. É uma espécie de prisão domiciliar. Há afazeres diversos como conhecer as lâmpadas, as torneiras, as sujeiras do tapete, as persianas emperradas, as gavetas entulhadas e ter de decidir o que fazer com  discos antigos que não servem mais para nada. Não conheci nada disso antes. Eram coisas que eu sabia vagamente que existiam. Sou injusta, mas não consigo deixar de pensar na ideia da prisão, prisão amena, mas insuportável. Condenada? Sim, condenada. Sentença final, sem recurso. 



 
 
 


 
 
 

 



 
 
 

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Ferreira Gullar: "Ano Novo"

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ano Novo

Meia noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta)



GULLAR, Ferreira. Toda poesia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1997.