quarta-feira, 29 de novembro de 2017

O presépio da Giovana


 
Comprei um presépio para Giovana, minha neta de sete anos. Sempre defendi a formação religiosa das crianças. Como escreveu  Dostoievski, no seu último e monumental romance Os Irmãos Karamazov, “se Deus não existe tudo é permitido".
 
Mantive minha fé no correr da vida, apesar de muitas divergências com a Igreja, mas hoje, na maturidade, nunca me senti tão distante das ideias religiosas como neste momento.
 
Quando li Nietzsche na juventude fiquei muito perturbada com suas pesadas críticas, a bem da verdade, com sua forma impiedosa e verdadeira de enxergar o catolicismo.
 
Para fugir ao conflito pessoal (sou especialista nisso) lembro-me de ter pensado que, na prática, as coisas não eram assim tão lamentáveis, uma vez que os católicos se beneficiavam de suas crenças. E, por meio delas, realimentavam a esperança.  
 
A minha fé é assunto privado que não depende das leituras ou das minhas flutuações opinativas. Leio a Bíblia com proveito, tenho santo de devoção (São José) e procuro cumprir as obrigações espirituais desde o tempo do catecismo.

Nunca fui surda ao poder cultural da religião. Na verdade, eu creio que Deus é a maior das ideias humanas.
 
Nos últimos anos, contudo, minhas relações com uma Igreja que concede perdão sem limite e, com isso, favorece a impunidade, passaram a incomodar-me profundamente.
 
Sinto falta da força e da nobreza da religião de S. Paulo e de Sto. Agostinho. Ao agarrar-se à pieguice, o catolicismo parece ignorar que tem atrás de si uma longa tradição intelectual. Tradição que esses dois santos representam com louvor.
 
Hoje, no entanto, tudo no catolicismo mudou depois dos escabrosos e imperdoáveis casos de pedofilia. E a Igreja Católica  definitivamente não parece ter força para se levantar, depois da gestão catastrófica dos crimes em série feita por Roma. 
 
Não é por acaso que nunca me senti tão distante da opinião católica, como neste momento. Mesmo assim, comprei um presépio para minha neta. Como podem ver, este é o texto de uma católica que não tem orgulho da sua Igreja, mas que não vê mal em ensinar uma criança a ter fé, a acreditar.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Leonard Cohen

Acabou
Acabou
Já não vou mais atrás de ti
vou deitar-me meia-hora
Acabou
não vou ficar na tua memória
não vou esfregar a minha cara na tua memória
vou bocejar
vou-me espreguiçar
vou espetar uma agulha de crochê
pelo nariz acima
e arrancar o cérebro
Não te quero amar
a vida inteira
quero que a tua pele
caia da minha pele
quero que a minha garra
deixe a tua garra
não quero viver
com a língua de fora
e outra canção nojenta
em vez
do meu taco de basebol
Acabou
agora vou dormir minha querida
Não tentes impedir-me
vou dormir
terei um rosto macio
e baba na boca
estarei a dormir
quer me ames ou não me ames
Acabou
A Nova Ordem Mundial
das rugas e do mau hálito
Já nada vai ser
como era antes
quando te comia
com os meus olhos fechados
esperando que não te levantasses
e fosses embora
Agora vai ser uma coisa diferente

uma coisa pior
uma coisa mais estúpida
uma coisa como esta
mas ainda mais pequena


Leonard Cohen, Book of Longing (2006)
(trad. PM)