terça-feira, 31 de outubro de 2017

Lutero: a singularidade de um homem

Por Ana Paula Menino Avelar

 
A 31 de Outubro de 1517, frei Martinho Lutero publica as 95 teses contra as indulgências, cuja tradição, para a qual muito contribuiu Philipp Melanchthon, consagra terem sido afixadas na porta lateral da igreja de Wittemberg. Nelas, Lutero contestava a prática comum de "resgate de almas do purgatório", entretanto transformada num comércio lucrativo.
 
O então frade Agostinho contribuía assim para o debate em torno da reforma da Igreja que ia acompanhando através dos seus estudos filosóficos e teológicos. Este era um assunto particularmente sensível, perigoso até, como atesta a excomunhão e condenação à morte na fogueira, em 1498, do dominicano Girolamo Savonarola, pregador da renovação eclesial.

Lutero só sobreviveria à polémica gerada pelas suas teses devido à proteção do príncipe eleitor, Friedrich, o sábio, e ainda ao eco que teve não só junto dos que o ouviam pregar
como daqueles que o liam e admiravam. Com efeito, a imprensa facultou a rápida e constante propagação das suas ideias, contribuindo para configurar um tempo novo marcado pelas rupturas religiosas e por profundas transformações da sociedade.

Lutero nasce em Eisleben a 10 de novembro de 1483. No ano seguinte, a família muda-se para Mansfeld, onde o pai inicia um lucrativo negócio de mineração do cobre. Martinho entraria na Universidade de Erfurt, onde em 1505 seria mestre em Artes. Nesse mesmo ano, contra a vontade paterna, ingressa no mosteiro Agostinho. Segundo a tradição, terá sido durante uma forte tempestade que, perante o medo da morte, prometeu seguir a vida religiosa.Após a ordenação, em Maio de 1507, regressa à Universidade de Erfurt, onde irá leccionar e aprofundar os estudos em filosofia e teologia. A sua atividade docente prosseguirá na recém-criada Universidade de Wittenberg.

Em 1510 é enviado a Roma, onde participa no debate sobre a reforma dos Agostinhos, contatando com a cúria papal de Júlio II, e testemunhando o fausto que mais tarde critica abertamente. Ao regressar à Alemanha prossegue a atividade como professor, continuando imerso na reflexão em torno da éxegese bíblica, e doutorando-se em Teologia. Devido à proteção do seu superior Johann von Staupitz e do príncipe eleitor, ocupa um lugar na Universidade de Wittenberg.

Após a publicação das 95 teses iniciam-se constantes disputas com outros doutores da Igreja e humanistas. Em 1518 escreve o seu Tratado sobre as indulgências e a Graça em que retoma princípios antes enunciados, transmitindo-os de um modo mais pastoral. Vários teólogos e humanistas acompanham-no nas suas reflexões, sendo Philipp Melanchthon um dos seus mais próximos interlocutores. Damião de Góis testemunhou a amizade que os unia, quando visitou Wittenberg, em 1531, um mês após a formação da Liga de Schmalkalden, que endurecia a luta dos príncipes protestantes do Sacro Império Romano contra Carlos V e o papa.

Góis ouviu o serviço religioso e a prédica de Lutero, e jantou em sua casa com Melanchthon. Aí conversaram sobre as práticas protestantes, tendo Góis declarado o seu desacordo face a alguns dos tópicos abordados. O diálogo continuaria, porém, através das missivas trocadas entre ambos.

Em 1518 e em 1519, Lutero é chamado a responder perante o imperador Maximiliano e perante o papa devido às suas posições. No entanto, a morte daquele e a eleição do novo imperador marcaria o seu destino. Embora Friedrich fosse inicialmente um dos candidatos, posteriores negociações levariam à eleição de Carlos V.

Em 1520 recrudescem os libelos de Lutero em defesa das suas posições. Redige, então, À Nobreza Cristã da Nação Alemã ..., exortando o papel da nobreza nas mudanças da Igreja para a salvação das almas. Dois meses depois redige Do Cativeiro Babilónico da Igreja... em que discorre sobre os sacramentos e sobre lugar do ritual na Igreja.

Em novembro sai A Liberdade do Cristão, em que retoma um dos seus temas nucleares, a questão da redenção. Por fim, publica Contra a Execrável Bula do Anticristo, cujo título na impressão alemã perde a palavra execrável, o que não lhe retira a tonalidade antipapal, num claro manifesto contra a excomunhão de que fora alvo. As posições tinham-se extremado: enquanto em Roma e noutras cidades se afixa a bula de excomunhão e se queimam os livros de Lutero, nalgumas cidades alemãs, como Wittenberg, queimam-se as decretais do papa e a bula que o excomungara.

Corre o ano de 1521 quando o imperador Carlos V convoca a sua primeira Dieta em Worms. Embora Lutero compareça, o resultado será a sua expulsão do Império. Sob a protecção de Friedrich, refugia-se em Warturg, onde traduz o Novo Testamento para alemão. Em março do ano seguinte regressa a Wittenberg, já então um dos mais importantes centros de impressão. Aí continua a escrever e a publicar.

Em 1525, numa discreta cerimónia, casa com Katharina von Bora, na presença dos seus amigos mais chegados, entre os quais se conta um dos principais impressores da cidade, o também gravador e pintor Lucas Cranach, o Velho. A ação deste, a par da de outros artistas, contribuiria decisivamente para a construção da iconografia da reforma e difusão dos seus textos.

Lutero continuaria, entretanto, a aprofundar a sua reflexão teológica. Recorde-se que, no ano anterior ao seu casamento, Erasmo, seu amigo de há muito, dele se afastara quando em Discurso sobre o Livre-Arbítrio defendeu a tese segundo a qual este permitia ao homem alcançar a salvação através dos seus atos e obras. Em resposta, Lutero escreveu Do Servo Arbítrio, em que defendia que os homens só são livres pela fé e não pela vontade ou pelo livre-arbítrio.

A sua voz continua a intervir nos acontecimentos do seu tempo. Discorda da revolta dos camponeses que eclode entre nos anos 1524 e 1525, e acompanha, nos anos subsequentes, a evolução do movimento da reforma, dissertando sobre vários assuntos eclesiais. Um dos seus gestos públicos mais polémicos ocorrerá, em 1543, ao defender a expulsão dos judeus da Alemanha; ele, que anteriormente se tinha lamentado pelo facto de a hierarquia cristã impedir tentativas de trazer os judeus para o cristianismo e se tinha pronunciado sobre os rituais judaicos.

Se a educação foi um dos seus temas de reflexão mais constante, a Bíblia permaneceu sempre no centro do seu pensamento e da sua ação, tendo concluído em 1534 a sua tradução integral. No ocaso da sua vida não deixa de acompanhar a atividade quotidiana da sua Igreja e de nela participar. Às três da manhã do dia 18 de fevereiro de 1546 morreu na cidade que o viu nascer: Eislaben.

*Prof. Assoc. Agregada Univ. Aberta CHAM-Centro de Humanidades

sábado, 21 de outubro de 2017

Ser conservador é ...

A sucessão presidencial vem aí o que acentuará a má vontade, a desinformação e a  preguiça ideológica com os conservadores — apontados como autoritários, insensíveis, fascistas e até  neonazistas, entre outros equívocos de costume. João Pereira Coutinho, escritor e brilhante jornalista português, é autor da melhor definição/conceito sobre a palavra:
"Conservadorismo é, antes de tudo, uma «disposição» filosófica, para usar o termo feliz de Michael Oakeshott - o maior filósofo conservador do século XX e um dos maiores pensadores de toda a história das ideias políticas. É isso que o distingue do liberalismo, ou do socialismo, mais facilmente sistematizados num cardápio político e prático."
Um conservador é alguém que possui uma disposição conservadora baseada na fruição e na resistência à mudança. A fruição nasce diretamente do conceito temporal essencial para um conservador: não o passado (como para um reacionário), não o futuro (como para um revolucionário) - mas O PRESENTE.
O conservador estima o presente porque ele tende a desfrutar aquilo que existe e não necessariamente aquilo que ele desejaria que existisse. O conservador lida com a realidade, não com o desejo. Prefere o familiar ao desconhecido; o tentado ao nunca tentado; o fato ao mistério; o atual ao possível; o limitado ao ilimitado; o próximo ao distante; o conveniente ao perfeito; a gargalhada presente à promessa utópica.
Para um conservador, é preferível manter do que adquirir, cultivar do que alargar. Isto está diretamente ligado com o problema da mudança. Não que o conservador seja contrário à mudança. Como diria Burke, uma sociedade que não sabe mudar não se sabe conservar. Mas, ao contrário de um revolucionário - de esquerda ou de direita -, um conservador sabe que em cada mudança existe uma perda. Por vezes, uma perda brutal e irreparável. Tanto que só abraça entusiasticamente a mudança quem, no essencial, nada tem para preservar.
O conservador define-se pelo ceticismo racional. E pela prudência. Naturalmente que algumas mudanças são inevitáveis para a continuidade da aventura humana, mas o conservador prefere alterações graduais, lentas, cautelosas, capazes de respeitar os arranjos sociais que resistiram ao teste do tempo.  
Em termos estritamente políticos, esta «disposição» não tem nada que ver com a lei natural ou com uma ordem providencial; nada que ver com a moral ou a religião.
Politicamente, interessa a um conservador ter bem presente que o exercício do governo é uma atividade específica e limitada: ele sabe que é necessário prover a sociedade com regras gerais de conduta e não, nunca, jamais, com comandos diretos ou imposições abusivas.
As regras gerais de conduta são um instrumento para que as pessoas possam seguir os seus próprios caminhos com a mínima frustração possível.
Um governo conservador não impõe soluções: ele resolve conflitos. Não começa com a visão de um mundo melhor, um Outro mundo. Começa com este mundo e sabe que é aqui que vivemos, é aqui que temos de acreditar e, quando a altura chegar, agir também. Um governo conservador não está preocupado com pessoas concretas, com classes, com atividades.
Não é um governo «moralista», no sentido de que exige dos homens determinados comportamentos tidos por «corretos» - sancionando os «desviantes». A principal preocupação de um governo conservador é a manutenção da paz e da segurança. Porque é da paz e da segurança que nasce a liberdade, ou seja, a pretensão legítima dos seres humanos conduzirem as suas próprias vidas.
Sou filha de conservadores.  Aprendi desde pequena, no exercício diário da tolerância, que não há perfeição humana. Não há mundos com prados verdejantes e nem tudo se pode resolver com slogans de cartilhas. Existe o vício, existe o caos, existem limites às ideias, existe a falibilidade humana, existe a experiência, existem dúvidas cruciais que recomendam prudência e não ousadia; e existem ameaças, perpétuas ameaças, ao que construímos.
O mundo que pisamos é sempre um mundo frágil, é sempre um mundo que precisa de defesa. Um conservador acredita nisto: na dúvida, mantém; na dúvida, fica; na dúvida, conserva. Mas a dúvida não o impede de prosseguir, a dúvida não o impede de mudar, quando é essa a melhor alternativa, quando o que não temos seja literalmente melhor do que o que temos.
Mas um conservador saber que devemos ser nós a assumir essa mudança, que somos nós que escrevemos o nosso destino, somos nós os responsáveis. Não o partido, não a multidão que vemos nas ruas, não o Estado que faz sempre menos do que pode.

O que separa, politicamente, um conservador e um liberal? Sabendo que o conservadorismo acaba na defesa da liberdade e autonomia individuais e o liberalismo na preservação de uma ordem política imune ao poder do Estado, haverá diferenças entre liberais e conservadores?

Os conservadores defendem as liberdades (políticas, econômicas, nomeadamente). Mas temperam ou sobrepõem a essa defesa uma visão essencialmente cética e pessimista da natureza humana. Nós queremos segurança, queremos paz, queremos proteger direitos básicos, queremos continuar vivos.

PS: Não caia no conto de candidatos antidemocráticos que se dizem conservadores ou liberais. Um conservador, obrigatoriamente, é adepto da Democracia. Ponto.


 

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

2018: Dois no páreo Candidato conservador e de direita contra Lula ou seu clone

BRASIL: A DIREITA CONSERVADORA TENDE A IR PARA O SEGUNDO TURNO NA ELEIÇÃO PRESIDENCIAL DE 2018!

1. A presença permanente do deputado Jair Bolsonaro em segundo lugar nas pesquisas pré-eleitorais realizadas por todos os institutos de pesquisa, não deve ser vista de forma personalista em função da imagem e posicionamentos do deputado. É provável que se as pesquisas incluíssem o nome de um General -destacado nas redes e na imprensa por suas declarações conservadoras-, haveria uma troca com Bolsonaro, que perderia alguns pontos nas intenções de voto.

2. Pesquisa recente do Instituto Paulo Guimarães, perguntando se os eleitores preferiam um presidente civil ou militar, 33% responderam que preferiam um Presidente Militar. Em outra pergunta, se para o Brasil seria melhor a Democracia ou um Regime Autoritário, 21,6% responderam que preferiam um Regime Autoritário. O Instituto Datafolha, em pesquisa de outubro, mostra que a direita + centro-direita somam 40% da preferência dos eleitores. E ao elencar opiniões sobre temas, 29% são a favor do cidadão possuir uma arma legalizada, 46% a favor da pena de morte, 83% a favor da proibição de drogas e 26% de desencorajar homossexualismo.

3. O instituto Pew de pesquisas, dos Estados Unidos, em pesquisa recente, em 38 países, perguntou sobre apoio ou simpatia por governos militares ou não democráticos. Folha de S. Paulo, 17/10: “Segundo a pesquisa, 23% dos entrevistados no Brasil dizem não gostar da democracia representativa e apoiam ao menos uma das três formas de governo: tecnocrático, militar ou com um ‘líder forte’. Nos 38 países, a média é de 13%, com 23% que dizem descartar formas de governo "não democráticas".

4. Quando a pergunta é feita especificamente sobre um governo militar, 38% dizem que a opção seria boa no Brasil, contra 55% que se opõem. Em todos os países, a média é de 24% de apoio a esse tipo de governo”.

5. Cruzando essas e outras pesquisas com pesquisas recentes políticas e eleitorais no Brasil, verifica-se que uma, se não a mais importante, resultante de opinião da crise política, econômica e corrupção política, é reforçar o apoio às ideias não democráticas e retomar a memória positiva do regime militar no Brasil.

6. Importante destacar que quando se faz referência às ideias ditas de Direita, as que ganham maior apoio são as conservadoras e não as liberais. A criminalização da política em função dos escândalos, reforça essa tendência.

7. As consequências eleitorais, se as eleições fossem hoje, são claras. Um candidato com ideias conservadoras de direita iria para o segundo turno. E mais ainda. Se Lula conseguir ultrapassar seus problemas jurídicos e se candidatar a presidente, ou se seu apoio aberto e colado a um candidato que seja sua “imagem e semelhança”, a probabilidade –hoje- é que no segundo turno teríamos um candidato conservador e de direita e Lula ou seu clone.

8. E agregue-se o efeito que o crescimento dos votos brancos e nulos e da abstenção terá sobre a decisão do eleitor em 2018. É provável que o voto conservador de direita tenha maior estabilidade e se beneficie dessa tendência. Dessa forma, os candidatos de centro, centro-esquerda ou centro direita, e especialmente os liberais, estariam –hoje- fora do segundo turno.

9. Mas ainda há muita água a passar nesse rio da opinião pública política. E que esse processo não corra espontaneamente, mas que seja impressionado pela opinião das pessoas, das redes e da imprensa. Espera-se!

Texto de Cesar Maia - Nota de abertura do ex-blog desta quarta,18 /10/2017

domingo, 15 de outubro de 2017

Blade runner 2049


"Blade runner 2049" é um filme longo, cansativo, contraditório, machista e muito, muito triste. Ao ditar a superioridade masculina até no mundo dos robôs, o filme assume um machismo atroz.
As cenas de sexo em que a imagem da mulher-robô (holograma) se funde com uma prostituta humana para agradar seu robô macho-alfa batem o recorde de mau gosto visual desde as pétalas em American Beauty. 
"Blade runner 2049" reproduz os piores estereótipos femininos. A propósito: a falta de personagens femininas fortes é um dos defeitos do roteiro, segundo a revista "Forbes".
A holandesa Sylvia Hoeks, do elenco de "House of cards", não tem o destaque que merece porque o filme se resume a apresentar a história de Ryan Gosling e Harrison Ford.
A "Forbes" também assinala o tempo de duração: duas horas e 75 minutos, enquanto a maioria dos filmes tem uma hora e 15 minutos.
O retrato da prostituta humana é tão contraditório que parece desmazelo. Em um momento ela aparece grampeando o herói e possibilitando sua localização pelos inimigos. No outro momento, a moça é uma revolucionária salvadora. 
Contradições é que não faltam. Logo no início do filme, o milionário do mundo dos negócios justifica a sofisticada fábrica de robôs como necessidade do mercado,  gerada pelo fim da escravidão.
Lá pelo meio do filme, no entanto, surgem cenas dramáticas da escravidão de crianças humanas. Sim, humanas, uma vez que robôs já nascem adultos e suas memórias infantis são implantadas, não aconteceram de fato.
Resumindo: mesmo com as críticas positivas e com a volta de Harrison Ford ao maior clássico de ficção dos anos 1980, o filme de Denis Villeneuve não atrai bilheterias e tampouco desperta a atenção ou o interesse do público por ser cansativo, não ter alívio de tensão, nem apelo aos jovens. 
A música altíssima não ajuda e torna o filme ainda mais triste e desolador com as imagens de imensos depósitos de lixo e todo o seu melodrama sobre a morte e a sobrevivência.
O único alento: sair do cinema com a sensação de que "ser nascido", característica que nos faz humanos, é motivo de júbilo e de felicidade. Sem contar que é bem melhor do que ser criado numa linha de montagem. 
Minha conclusão: o filme original continua insuperável.