domingo, 31 de agosto de 2014

Grandeza:Thomas Mann


 
«Digam o que disserem, o cristianismo, essa flor do judaísmo, continua a ser um dos dois pilares principais em que assenta a civilização ocidental, sendo o outro a Antiguidade mediterrânica. A negação de um destes pressupostos fundamentais da nossa moralidade e erudição, ou até de ambos, por qualquer grupo da comunidade ocidental, significaria a sua exclusão da mesma, e uma inimaginável, de resto, louvado seja Deus, nem sequer exequível redução do seu estatuto humano. (…) Tempos exaltados, como o nosso, que sempre tendem a confundir meras manifestações da época com o eterno (por exemplo, liberalismo e liberdade) e a despejar a criança com a água do banho, exortam toda a pessoa mais séria e livre a que não se limite a flutuar ao vento da época, a regressar às bases, a voltar a ganhar consciência das mesmas, e a insistir nelas sem transigir. A crítica que o século faz dos assuntos morais cristãos, as correções (…), permanecem, por muito fundo que cheguem, por muito transformadores que sejam os seus efeitos, movimento de superfície. Elas nem sequer tocam naquilo que condiciona, define e vincula (…) o cristianismo cultural do homem ocidental (…) uma vez conquistado e nunca alienável.»
Thomas Mann em Viagem marítima com Dom Quixote (1934)

sábado, 30 de agosto de 2014

Não: não quero nada.



Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!)—
Das ciências, das artes, da civilização moderna!
Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a
Sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!
Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!,,,
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz!
Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho.

Álvaro de Campos, Lisbon Revisited, 1923

domingo, 24 de agosto de 2014

FEIOS E BONITOS







Qual o papel da boa aparência em política? O que constitui a boa aparência? Sexy é um adjetivo normalmente problemático para mulheres que buscam se eleger?  Há perguntas interessantes a respeito do tema.  Alguns políticos de grande expressão do passado, como Getulio Vargas, que era baixinho e sempre se manteve fora do peso, teriam a mesma popularidade hoje? E Jânio Quadros com aquela aparência de Napoleão de hospício? Os cabelos ajudam? "Cabelos ajudam", diz o ex-governador de Nova York Hugh Carey, que tingia os seus. No Brasil, quase todo o mundo tinge, faz implante ou usa peruca, mas quase ninguém pesquisa, a sério, a questão da aparência. 
 
Nos Estados Unidos, muitos especialistas consultados sobre o tema concordam que aparência suave ajuda em política, mas admitem que podem surgir dúvidas quanto à acuidade intelectual de quem acha que apenas a beleza põe a mesa. Marilyn Quayle disse em 1981, logo depois de seu marido Dan Quayle ser eleito ao Senado (poucos anos depois ele viria a ser vice-presidente dos EUA): "Alguns durante a campanha diziam `não vou votar nele porque ele usa a boa aparência para concorrer'. Bem, o que ele devia fazer? Enfiar um saco no rosto?" A verdade é que muita coisa mudou na política dos EUA desde os debates Kennedy-Nixon em 1960. Com o predomínio da televisão, assessores de campanha passaram a exigir boa aparência ou, pelo menos, a dizer que os candidatos não podem repelir fisicamente os eleitores.

"Depois de 1960, se você for horroroso será muito prejudicado na política", diz Beschloss. "Cem anos atrás, não era bem esse o caso." Até Abraham Lincoln, cujo carisma e presença são inesquecíveis, era geralmente considerado feio - ele próprio o admitia. Morris, o biógrafo de Theodore Roosevelt e Ronald Reagan, disse duvidar que Roosevelt se saísse bem na televisão, por causa de sua "voz muito alta, áspera" e "dentes brancos, rangentes". Mas Reagan, acrescentou Morris, tinha uma "beleza física" que era "uma grande parte de seu poder". 

Traços simétricos, maxilares bem-talhados e ombros largos: John F. Kennedy é geralmente reconhecido como o responsável pelo estabelecimento do padrão perfeito em matéria de atrativos para um presidente. Além da estética quase perfeita, sua grande beleza tornou-se lenda por refletir juventude, energia e entusiasmo.  Gore Vidal conta que, uma vez, numa festa onde estava com Tennessee Williams passou por eles o jovem senador Kennedy. Perderam o fôlego e a visão inspirou ao dramaturgo o seguinte comentário: "Deus do Céu, que belo traseiro!".
 
Nas mulheres, atrativo é coisa mais complicada. Aparência melosa decididamente não ajuda; nenhum dos especialistas conseguiu citar bonecas eleitas, exceto Jeanine Pirro, promotora federal no Condado Westchester (Estado de Nova York). Na opinião de David Garth, “é mais difícil para as mulheres". Mulheres devem parecer atraentes e maduras como Ségolène Royal e Hillary Clinton. Patrick McCarthy dá a Hillary notas bem altas por fixar-se num visual, um conjunto escuro e um penteado. Como consequência, as pessoas pararam de falar de seu cabelo - objetivo de qualquer mulher na política. 
 
McCarthy tem a firme opinião de que a aparência sexy é "desastrosa" para políticos, pois "indica que ele ou ela tem na mente coisas que não se referem à melhor legislação". Atitudes provocantes e sensualidade explícita contrariam em tudo a imagem de eficiência e dever cívico que se espera, ou se deveria esperar, dos políticos. Granger, da revista Esquire, também elogia Hillary por sua aparência bela e austera. "É uma combinação de força e inteligência e também a disposição de juntar firmemente essas armas", diz Granger.
 
Estudos mostram que, quanto mais bonita é uma pessoa, maior é seu salário e maiores são as chances de ser absolvida por um júri. A verdade é que fazemos julgamentos o tempo todo e, hoje, usamos a beleza como um indicador de competência. Pessoas com rosto simétrico ou feições mais definidas seriam vistas como mais dignas de confiança. Além disso, contam pontos também cabelos bem cuidados e roupas alinhadas. Não é por acaso que na época das campanhas, todos eles se cuidam mais. 

A opinião final e unânime dos especialistas é a de que a aparência, em política, nunca importa tanto quanto as posições assumidas ou o firme trabalho nas campanhas. Vale dizer: num mundo em que todos querem ser belos, a política atrai os esteticamente privilegiados e lhes dá um bom empurrão inicial. Depois, seu desempenho tende a ser julgado por padrões mais comuns.


Fontes: historiador Michael Beschloss, especialista em candidatos a Presidência dos EUA, o consultor político David Garth, o ex-governador Mario Cuomo, o ex-prefeito Ed Koch, a ex-candidata à vice-presidência dos EUA Geraldine Ferraro, o consultor-chefe do governador George Pataki para política, o biógrafo de presidentes Edmund Morris, o pesquisador de opinião pública Mark Penn; o chefe de redação da Esquire, David Granger, e Patrick McCarthy, diretor da Crown Books.

sábado, 23 de agosto de 2014

ALEGRIA E TRISTEZA

"Em nenhuma época da história da humanidade esteve o mundo tão cheio de sofrimento e de angústia. Contudo, aqui e além, encontramos indivíduos que não estão contaminados, manchados pela dor comum. Não são criaturas sem coração, longe disso! São indivíduos emancipados. Para eles, o mundo não é que nos parece. Vêem-no com outros olhos, dizemos que morreram para o mundo. Vivem na luz do sol, na harmonia da forma e do ritmo que é melodia pura. Vivem, no momento que passa, com toda a plenitude, e a radiação que deles emana é um perpétuo hino de alegria (...). Morremos a lutar para nascer. Nunca fomos, nunca somos. Estamos sempre na contingência de vir a ser, separados, desligados sempre. Sempre do lado de fora"...
 
Henry Miller, 1948

sábado, 16 de agosto de 2014

EDUARDO CAMPOS




A exemplo de tantos brasileiros, acompanhei com atenção e interesse as noticias sobre o velório e o enterro de Eduardo Campos. Achei impressionante a dor sincera exposta por milhares de pessoas naquele ambiente de comoção, tristeza e inconformismo com a tragédia, sentimentos raros e quase inexistentes no mundo da política.

Acredito que Eduardo Campos representava muito do que a maioria de pernambucanos, nordestinos e brasileiros gostaria de ser. Além de jovem, bonito e inteligente, era feliz e bem sucedido. Tanto que levou para o Palácio das Princesas, onde despachou por oito anos, a alegria de viver ao lado de uma jovem e bela primeira-dama, com uma fieira de filhos lindos e fotogênicos.

Em três décadas de jornalismo, sempre ouvi falar que os políticos pernambucanos divergiam em quase tudo e apenas um ponto os unia: eram fechados, turrões, não falavam com facilidade, não sorriam e não tinham senso de humor. Marco Maciel, Jarbas Vasconcelos, Roberto Freire, Roberto Magalhães e Joaquim Francisco parecem ser assim. Eduardo Campos parecia o contrário.

Com o sorriso sempre aberto, partilhou a imagem de família feliz com seu estado e com o Brasil. Além disso, defendia com clareza, como a maioria de nós, a visão de um mundo melhor e mais desejável. Não foi por acaso que o trágico acidente em Santos causou em Pernambuco uma sensação de orfandade objetiva, exposta nas cenas comoventes do velório e do enterro.

Essa mesma sensação, de alguma forma, percorreu e ainda percorre o Brasil inteiro, como nunca antes tinha acontecido. Como pode ter morrido alguém assim? Ficamos a dever a ele uma atenção maior? Estamos ainda mais sentidos com sua morte porque não fomos capazes de perceber, antes do acidente trágico, que o ex-governador de Pernambuco era um político que valia a pena?

Só o tempo poderá trazer algum consolo para aqueles que o amaram, admiraram e conviveram com ele, a começar pela sua mulher, seus filhos, sua mãe, irmãos, parentes e amigos. Para nós, que estamos à distância, ficará para sempre, cristalizada na memória, sua imagem jovial e sorridente. Nunca vamos imaginar Eduardo Campos triste, velho, doente ou infeliz.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Seis dicas de Harvard para criar filhos bons





Os psicólogos de Harvard recomendam seis dicas para criar filhos bons, dotados de empatia e consciência social, qualidades que são fundamentais para o sucesso no mundo do trabalho. O estudo, intitulado “As crianças que queremos educar“, começa por afirmar que as crianças não nascem simplesmente boas ou más, e que nunca devemos desistir delas.

“As crianças precisam de adultos que as ajudem, em todas as fases da infância, a tornar-se solidárias e éticas”. É preciso desenvolver nas crianças “a preocupação pelos outros”, não só porque é o correto, mas também porque sentir empatia e assumir a responsabilidade perante outros é uma grande ajuda no caminho para o sucesso e para a felicidade.

Segundo a Making Caring Common, da Harvard Graduate School of Education, os seis princípios gerais para criar os filhos com carinho, respeito e ética são:

1. Seja um mentor e um modelo forte

As crianças aprendem valores e comportamentos através da observação dos adultos que elas mais respeitam: os pais.

Tente isto: Envolva-se em serviço comunitário ou noutras formas de contribuir para a comunidade. Melhor ainda, pense fazer isso com o seu filho. Quando cometer um erro que afete a criança, converse com ela sobre por que acha que o cometeu e como pretende evitar cometer o erro da próxima vez.

2. Faça do cuidado com os outros uma prioridade

Os pais devem explicar que a preocupação com terceiros é de extrema importância, tanta quanto a nossa própria felicidade. “Embora a maioria dos pais diga que o cuidado com os outros é uma prioridade para os seus filhos, eles não estão a receber essa mensagem”.

Tente isto: Em vez de dizer aos seus filhos que “o mais importante é que sejas feliz”, diga que “o mais importante é que sejas gentil e feliz”. Tente também abordar o assunto quando outros adultos importantes para a vida do seu filho estejam presentes, por exemplo, perguntar à professora se o filho é um bom membro da comunidade, em vez de perguntar apenas pelo aproveitamento escolar. E se um dia ele quiser desistir de uma equipe de esporte, de uma banda ou de uma amizade, fale sobre isso. Pergunte se a desistência não vai prejudicar o grupo e encoraje-o a resolver os problemas.

3. Crie oportunidades à criança para que possa praticar atos de carinho e gratidão

Boas pessoas todos podemos ser, mas isso não acontece do nada. As crianças precisam praticar o cuidado com os outros, a gratidão e a apreciação pelas pessoas que as tratam bem. “Estudos mostram que pessoas que têm o hábito de expressar gratidão são mais propensos a ser úteis, generosos, a ter compaixão e a perdoar”, escreve a Making Caring Common. Tudo isto ajudará a criança a crescer mais feliz e saudável.

Tente isto: Espere que as crianças ajudem de forma rotineira, por exemplo, com as tarefas domésticas, e elogie apenas atos menos comuns de bondade. Quando este tipo de ações de rotina são simplesmente esperados e não recompensados, são mais facilmente interiorizados pelos mais novos. Fale também com o seu filho sobre os gestos de cuidado e indiferença, justiça e injustiça que ele vê no dia-a-dia ou na televisão

4. Aumente o círculo de preocupação da criança

É normal que as crianças simpatizem mais com um círculo pequeno de familiares e amigos. O desafio aqui é fazer com que os mais pequenos aprendam a preocupar-se e a dar-se com pessoas fora do círculo, tais como um novo colega da escola ou alguém que não fale a mesma língua

Tente isto: Incentive a criança a considerar os sentimentos daqueles que estão numa situação mais vulnerável. Pode também usar com os seus filhos histórias de jornais ou televisões para iniciar conversas com outras crianças sobre o que se passa no mundo e os problemas que meninos da mesma idade estão a passar, dando-lhes visões muito diferentes da realidade.

5. Ajude a criança a tornar-se numa pensadora e líder ética

As crianças interessam-se naturalmente por questões éticas e por norma gostam de melhorar a sua comunidade.

Tente isto: Aproveitando estes interesses dos mais novos, inicie com eles uma conversa sobre dilemas éticos que surgem, por exemplo, na televisão. Procure causas às quais a criança possa aderir, como a prevenção do bullying ou o apoio à educação nos países em vias de desenvolvimento

6. Ajude a criança a desenvolver o autocontrolo e a gerir os seus sentimentos

Muitas vezes, a capacidade de nos preocuparmos com o outro é suplantada pela raiva, vergonha, inveja ou outro sentimento negativo qualquer.

Tente isto: Uma maneira simples de ajudar os seus filhos a gerirem os seus sentimentos é praticarem juntos estes três passos: parar, respirar fundo pelo nariz e expirar pela boca, e depois contar até cinco. Experimente quando os seus filhos estiverem calmos. Depois, quando estiverem chateados por alguma razão, lembre-os dos passos e pratiquem-nos em conjunto. Não se esqueça também de praticar com eles a resolução de conflitos. Falem sobre um conflito a que tenham assistido e que tenha acabado mal, e peça-lhe para sugerir soluções mais pacíficas e construtivas para resolver o problema.

sábado, 9 de agosto de 2014

Imprensa livre e liberdade de expressão

 
 
Imprensa livre e liberdade de expressão são conquistas máximas da democracia que todos nós construímos. A democracia não sobrevive sem imprensa livre, valor essencial para consolidar a dignidade do ser humano.

A Constituição Federal explicita a liberdade de informação no art. 5º, incisos IV (liberdade de pensamento); IX (liberdade de expressão) e XIV (acesso à informação) e no art. 220, § 1º (liberdade de informação propriamente dita).

No art. 220, § 2º, a Constituição veda qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

O referido artigo dispõe que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

“Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, determina o parágrafo 1º.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art. 19, proclamou em favor de todos o direito à liberdade de opinião e expressão sem constrangimento e o direito correspondente de investigar e receber informações e opiniões e de divulgá-las sem limitação de fronteiras.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem estabeleceu no art. 10, § 1º que “toda a pessoa tem direito à liberdade de expressão”. Esse direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de comunicar informações ou ideias, sem que possa haver a ingerência da autoridade pública e sem consideração de fronteiras. 

Nenhum cidadão pode achar que exerce poderes irrecorríveis, e, portanto, incompatíveis com as garantias, direitos e deveres constitucionais.

A liberdade de expressão, a crítica, a realização das eleições, enfim o respeito às determinações da Constituição, formam o pacote democrático. Ao cidadão ou cidadã que não percebe esta evidência não podem ser dados poderes acrescidos.

domingo, 3 de agosto de 2014

Não sou menos amiga das pessoas de quem discordo...



«É mais justo acentuar que a amizade, mesmo entre iguais, aceita a diferença, a dissenção e a liberdade do outro. Não sou menos amigo das pessoas de quem discordo. E algumas manifestações de amizade mais consistentes que conheço consistem em deixar alguém em paz, deixá-lo ser quem é, às vezes sozinho, em solidão temporária e benéfica. Não ter amigos, não ter amigos nunca, leva ao fechamento, à incivilidade, à insanidade. Mas há amizades que são também formas de solidão. Amizades sem empatia, isto é, sem a tentativa de entendermos aquilo que nunca experimentámos. Amizades sem confidencialidade, que são formas de perfídia. Amizades inclementes como julgamentos sumaríssimos. Ou um amigo que diz mal de nós em público, ou fica calado quando nos ofendem. Um amigo que é um inimigo.»
 
Pedro Mexia, Expresso/ Portugal, 3/8/2014 
 
 PS: Concordo tão completamente com Pedro Mexia que me ocorre aquele verso da música "Caçador Mim" de Milton Nascimento: "Certas canções  que ouço cabem tão dentro de mim que perguntar carece como não fui eu que fiz?". No caso, "certos textos que leio"...
 

Obama: política e religão

 
 
Depois de séculos de desavenças na política entre laicos, por vezes ateus e os religiosos, penso que alguma coisa acabará mudando nesse tipo de debate em razão do comportamento inovador de Obama nas duas corridas vitoriosas que empreendeu nos Estados Unidos. Obama falou sobre religião no calor da primeira disputa e ao final da segunda. Manifestou-se como crente em Deus, mas disse não ser partidário ou representante de nenhuma igreja.

Sem usar politicamente a relação de proximidade com a fé, deixou claro que não era ateu, mas manteve o distanciamento pessoal, ou seja, não virou personagem da religião. Afinal, assinalou, era candidato a presidente dos EUA e não a pastor de almas. Obama, como é hábito nas campanhas eleitorais nos EUA, se declarou cristão, mas protegeu a sua fé de uma dimensão pública. E inovou ao invocar, em pé de igualdade, a mensagem de amor de todas as religiões do mundo. Com isso, recuperou, de alguma maneira, a retórica quase universalista dos filhos de Abraão.

Ele converteu-se já adulto, não pela catequese ou por revelação, mas pelo contato com as obras sociais das Igrejas de Chicago. Esta maneira de chegar à fé facilitou sua teologia política. O seu pós-secularismo ecumênico permite-lhe falar de um Deus de todas as pessoas e não necessariamente naquele em que o cidadão Barack Obama acredita. E isso parece ter sido satisfatório para a maioria dos eleitores norte-americanos, incluindo os que não acreditam em Deus nenhum.

Sem defender a ideia dos laicos e ateus, que almejam separar a religião do Estado, e ao contrário dos religiosos, que buscam fazer uso maniqueísta de Deus, Obama adotou a seguinte linha: o Estado deve assimilar todas as Igrejas. A teologia política de Obama, porque é disso que se trata, busca fazer da religião um instrumento de política do Estado. Não é a fá particular do cidadão Obama que está em jogo.

Claro que ao falar para o Deus de todas as pessoas, Obama busca extrair dividendos eleitorais, mas não custa reconhecer que essa posição é um avanço em relação ao que estamos acostumados a ver por aí com candidatos sendo fotografados rezando, em procissões ou até recebendo o sacramento da comunhão. Obama, pelo menos, não tentou tirar proveito de algo íntimo e pessoal como sua fé religiosa.

Obama não quer invocar nenhuma Igreja que se julgue detentora da verdade sobre Ele, mas aliar-se a todas as Igrejas. Esta política joga muito bem com a estratégia de renascimento religioso ensaiada por grandes Igrejas nos anos 70, quando transferiram o primeiro passo da sua evangelização da catequese para a educação e as obras sociais. A aliança entre esta estratégia de evangelização e a política pós-secular é duradoura e tem sido profícua.

O Estado encontrou parceiros e intermediários fortes. A Igreja encontrou um modo de convivência com a política sem discussão sobre Deus e o Estado. O Estado não pede aos prestadores de serviços sociais que não doutrinem. As Igrejas co-financiam o Estado e chegam aos locais onde ele não consegue ou não tenta chegar. Obama repete assim uma aposta que dá certo na Inglaterra e na grande maioria dos países europeus.

Antes de Obama, apenas o inglês Tony Blair havia encarnado posição semelhante ao deixar claro que era cristão, era crente em Deus, mas não devotava adesão a nenhuma igreja.