quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Feliz Ano Novo

 
Ao dar meia-noite que ninguém entristeça, nem se sinta abandonado ou só. Que todos os meus amigos virem a folha do calendário em meio a brindes, risos, abraços e beijos. Todos temos direito a um novo amanhã repleto de alegrias.

Final de 2015

Peste Emocional
Foi o ano da peste,
das colheitas perdidas.
Andei ao pé coxinho
de pedra para pedra,
a côdeas de futuro,
de janeiro a janeiro.
Ainda trago marcas
nos braços e nas testa.
Nunca a minha alma
levou tanta porrada.
Nem livros me sofriam
na fustiga do olhar.
Dormia desamor,
acordava mal estar,
corria sem café
para a forca do emprego.
Ficou-me desse giro
desses fundos da geena
a tola convicção
de que, pronto, já passou.


(José Miguel Silva, "Vista Para Um Pátio seguido de Desordem" (2003), Relógio D'Água)

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

"Tropeço de ternura por ti"

UM ADEUS PORTUGUÊS



Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti



Alexandre O'Neill

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

domingo, 20 de dezembro de 2015

Sem jeremíadas, por favor!

Não contem comigo. Não estou especialmente disponível para um discurso contra o Brasil. Não tenho ressentimentos geográficos. Nunca desejei ser filha da Europa ou de qualquer outro Continente. Estou bem aqui. Sempre reconheço no discurso de "só no Brasil" uma variante um pouco mais educada do "não está vendo com quem está falando?" Coisa de quem deseja dizer que é melhor que os outros, que viajou, que conhece outros países, enfim, que não é como todo o mundo...Também viajei um pouco e quero declarar que  não sou dada a "patriotadas", mas considero as queixas sem sentido, essas verdadeiras jeremíadas do tipo "só neste país", sempre acompanhadas de um olhar artificial de desprezo, uma chatice. É saudável e desejável condenar a mania de grandeza, aquela história patética do “maior do mundo”. Nada disso. E nada também de sair por aí, para parecer descolado, ou “cool”, fazendo provocações gratuitas e dizendo que “não existe cultura brasileira ou idioma português”. Quando escuto isso lembro-me do esforço que tantos professores fazem para repassar o legado de Camões, Fernando Pessoa, Camilo Castelo Castello Branco, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Tom Jobim, Tarsila do Amaral e tantos outros. E acho, sinceramente, que gente que diz essas coisas pode até ser e parecer engraçada, mas não foi grande coisa na escola.    

domingo, 6 de dezembro de 2015

Isso é tudo que tenho...

Faça chuva ou faça sol, em qualquer dia da semana há brasileiros discutindo sobre o impeachment, sobre o PMDB, o PT, a crise e Eduardo Cunha. Pessoas que se interessam por política. E que dizem coisas interessantes como este pensamento que li (não lembro onde) hoje: o pressuposto da democracia é a legitimidade daquele que discorda de mim.

 
Se estou sendo investigado por ilegalidades no trato da coisa pública, como posso exigir ética dos outros? Como posso apontar o dedo em direção a alguém? Se não tenho princípios, se acredito que o fim justifica os meios, como posso alegar padrões éticos para tentar condenar alguém? Posso ser moralista se recebi dinheiro de caixa dois?   
O pressuposto da democracia é a legitimidade daquele que discorda de mim. E a credibilidade de quem se acha no direito de discordar, contestar e exigir honestidade dos outros. Isso é o que ensinam as pessoas que se interessam pela política com espírito público e consciência. Eu conheço muitas pessoas assim.
São pessoas que nos fazem pensar porque participam, procuram ler e analisar as notícias e prestam muita atenção nos discursos transmitidos pela TV Câmara, TV Senado e pela TV Justiça. Elas acreditam, têm plano, ideias e certezas. Têm uma «consciência política», uma «visão do mundo».
Eu não possuo um plano, uma ideia ou sequer uma certeza. E, muito menos, uma «visão». Sou míope desde pequena, vejo tudo embaçado. Na verdade não possuo quase nada. E meu estilo de vida levou muito da minha fé. Além disso, sei muito menos do que gostaria.
As pessoas do mundo do poder de Brasília, onde moro há três décadas e meia, sabem quase tudo do poder. Argumentam que precisamos mudar a política porque a política se converteu num pântano de irregularidades, distorções, intrigas e desvios do dinheiro público.
Estas pessoas sabem tanto que enxergam a política quase como uma entidade que existe fora do coração dos homens. Isso me espanta. Elas acreditam que podem mudar a política porque seguem acreditando nos homens, confiam na espécie, no esforço humano e sonham com um futuro melhor para seus filhos e os filhos dos seus filhos.
Para elas, há sempre alguma coisa por trás do erro ou do fracasso, uma explicação última para a falha ou para o insucesso, uma verdade essencial que tudo explica e tudo redime. Eu invejo esta firmeza e decisão. Sou tão insegura e confusa que chego a pensar que há remédios piores do que algumas doenças, mas não queria ser assim.
Queria ter fé, confiança e certezas. E queria muito uma “consciência política”. Quem sabe assim eu conquistaria o direito de viver sem tantas indecisões, dores e tantos tormentos. Quem sabe assim eu deixaria de ser esta apática e apolítica criatura em que me transformei. Acreditem em mim. Não quero mais ser como sou.
Não quero mais suspeitar de Rosseau. Não posso continuar achando que o homem não é uma criatura em que se possa confiar. Vou mudar. Sei que careço de otimismo, fé e esperança, mas tenho o resoluto desejo de seguir carregando o estandarte das pessoas de boa vontade. Além do desejo de seguir navegando. É só isso que tenho.
 

domingo, 15 de novembro de 2015

Dia da República

Eis a História da República do Brasil abreviada: não podíamos falhar e falhamos.

sábado, 14 de novembro de 2015

Estado Islâmico: Matar, matar, matar!

Você sabe o que é o Estado Islâmico?
 
É a face mais cruel do fanatismo islamita, o terrorismo que surgiu das cinzas das duas últimas guerras declaradas pelo mundo ocidental "contra o terror". A primeira contra os talibãs afegãos, que tinham transformado o Afeganistão em campo de treino da al-Qaeda, e a segunda contra Saddam Hussein. 

A destruição da estrutura sunita do Iraque teve como um dos efeitos a emergência do Irã xiita como a principal potência regional. A destruição da estrutura sunita iraquiana teve outras consequências: a maioria xiita, que tinha sido subjugada por Saddam, resolveu vingar-se dos sunitas.

Não havia segurança para os sunitas. Não havia segurança para quem quer que seja. Governos  sectários e corruptos instalaram-se no Iraque. Com isso, explodiu a violência entre curdos, sunitas, xiitas, etc. Enquanto isso, no país ao lado do Iraque, a Síria, começa a guerra civil contra Bashar al-Assad. Isso atrai o jihadismo sunita que tinha estado preso, ou escondido, durante a ocupação americana. 

Patrick Cockburn,  experiente jornalista do ‘The Independent’, diz que o Estado Islâmico formou-se embaixo dos olhos complacentes do Ocidente na fronteira entre a Síria e o Iraque. Segundo ele, ninguém prestou atenção quando a Arábia Saudita, mesmo depois do 11 de Setembro e da invasão do Afeganistão e do Iraque, continuou a patrocinar o jihadismo sunita de inspiração wahabbista (uma versão radical do Islã.

Diz também que o Ocidente devia ter acordado quando a oposição a Bashar al-Assad deixou de ser capitaneada por movimentos "moderados" – e foi tomada de assalto por um grupo terrorista mais feroz do que a al-Qaeda. E que o Ocidente devia ter visto quando o ISIS, liderado por Abu al-Baghdadi (um prisioneiro do exército americano entre 2005 e 2009) começou a destroçar o Iraque: rebentando com as prisões do país (incluindo a fortemente simbólica Abu Ghraib); ou tomando cidades como Fallujah e Mosul. 
Com uma tácica que, segundo Patrick Cockburn, faz lembrar "uma serpente que se move entre rochedos", o Estado Islâmico agora passou a percorrer estradas e campos europeus onde forma ninhos e pôe ovos. Por que não foram barrados? Por que ninguém viu? Ninguém podia ver pela seguinte razão: isso iria desacreditar a história de que a guerra contra o terror tinha sido um sucesso, sustenta o jornalista do ‘The Independent’.

É isso. Enquanto o Ocidente festejava o "sucesso" da guerra contra o terror, o ISIS controlava um "califado" no Iraque e na Síria do tamanho da Grã-Bretanha. E agora? Os cenários possíveis, segundo o autor: uma longa guerra civil no Iraque e na Síria; ou a divisão dos países de acordo com fronteiras étnicas e religiosas (como sucedeu na Índia em 1947).
E se nada for feito? Neste caso eles seguirão a utopia de exportar o jihadismo para o Ocidente, a começar pela Europa. E poderão repetir em Londres, Madri, Barcelona, ou em qualquer outra cidade do planeta, o que acabaram de fazer em Paris para punir os "infiéis": matar, matar, matar. 
 

O rumo do desengano...



Em todos os lugares se misturam os anjos e os demônios, os ingênuos com os cínicos, os ladrões com os honrados, os ignorantes e os sabidos. Não adianta apontar o dedo, a maioria dos seres humanos é assim, age em busca de vantagem, sem se amparar em valores, princípios e/ou preocupações sociais/culturais. Por que estou dizendo isso? Porque não é no outro que devemos esperar a salvação, mas de nós próprios, do que temos de consciência pessoal. Sonhar com saídas alheias ou esperar que o outro nos dê conforto é tomar o rumo do desengano. 

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O segredo é não se resignar...




O segredo é não se resignar, não se considerar vítima, não mostrar aos outros tristeza ou desespero. O verdadeiro herói não se rende porque aprende que aquilo que o distingue dos outros não é a altivez com que enfrenta a morte, mas sim a paciência com que suporta diariamente os problemas e os esfrega de volta na cara de quem lhe provoca injustiças e sofrimentos.  Não desanimar, nunca desistir. Não perder a esperança mesmo quando tudo parece mudar para ficar no mesmo lugar. Todos os seres humanos tem fragilidades e dúvidas, mas tem, igualmente, capacidade para manter a coragem, a perseverança e determinação. O segredo é manter a dignidade. Até quando a gente está no chão. Lembro a cantiga dos tempos da faculdade:
um jornalista não deve sair no sábado à noite/
a não ser prá trabalhar, mas se vier a sair prá se divertir
não deve exagerar, mas se exagerar/não deve se embriagar,
mas se vier a se embriagar/não deve desequilibrar,
mas se desequilibrar/ que tente não cambalear,
mas se vier a cambalear/que não vá se esborrachar,
mas se vier a se esborrachar/que se esborrache de bruços
e enterre a cara no chão/para que seus leitores não possam
reconhecê-lo nesta humilhação. Não, isso não!

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Coisas necessárias para mudar o mundo...


"Muitas coisas são necessárias para mudar o mundo:
raiva e tenacidade. ciência e indignação.
a iniciativa rápida, a reflexão longa,
a paciência fria e a infinita perseverança,
a compreensão do caso particular e a compreensão do conjunto,
apenas as lições da realidade podem nos ensinar como transformar a realidade"...

Bertold Brecht 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Feliz Ano Novo Rubem Fonseca


"Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque.
Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros.
Pereba entrou no banheiro e disse, que fedor.
Vai mijar noutro lugar, tô sem água.
Pereba saiu e foi mijar na escada.
Onde você afanou a TV, Pereba perguntou.
Afanei, porra nenhuma. Comprei. O recibo está bem em cima dela. Ô Pereba! você pensa que eu sou algum babaquara para ter coisa estarrada no meu cafofo?
Tô morrendo de fome, disse Pereba.
De manhã a gente enche a barriga com os despachos dos babalaôs, eu disse, só de sacanagem.
Não conte comigo, disse Pereba. Lembra-se do Crispim? Deu um bico numa macumba aqui na Borges de Medeiros, a perna ficou preta, cortaram no Miguel Couto e tá ele aí, fudidão, andando de muleta.

Pereba sempre foi supersticioso. Eu não. Tenho ginásio, sei ler, escrever e fazer raiz quadrada. Chuto a macumba que quiser.
Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta.
As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí?
Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente.
Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa.
Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido.
Zequinha entrou na sala, viu Pereba tocando punheta e disse, que é isso Pereba?
Michou, michou, assim não é possível, disse Pereba.
Por que você não foi para o banheiro descascar sua bronha?, disse Zequinha.
No banheiro tá um fedor danado, disse Pereba. Tô sem água.
As mulheres aqui do conjunto não estão mais dando?, perguntou Zequinha.
Ele tava homenageando uma loura bacana, de vestido de baile e cheia de jóias.
Ela tava nua, disse Pereba.
Já vi que vocês tão na merda, disse Zequinha.
Ele tá querendo comer restos de Iemanjá, disse Pereba.

Brincadeira, eu disse. Afinal, eu e Zequinha tínhamos assaltado um supermercado no Leblon, não tinha dado muita grana, mas passamos um tempão em São Paulo na boca do lixo, bebendo e comendo as mulheres. A gente se respeitava.
Pra falar a verdade a maré também não tá boa pro meu lado, disse Zequinha. A barra tá pesada. Os homens não tão brincando, viu o que fizeram com o Bom Crioulo? Dezesseis tiros no quengo. Pegaram o Vevé e estrangularam. O Minhoca, porra! O Minhoca! crescemos juntos em Caxias, o cara era tão míope que não enxergava daqui até ali, e também era meio gago - pegaram ele e jogaram dentro do Guandu, todo arrebentado.
Pior foi com o Tripé. Tacaram fogo nele. Virou torresmo. Os homens não tão dando sopa, disse Pereba. E frango de macumba eu não como.
Depois de amanhã vocês vão ver. Vão ver o que?, perguntou Zequinha.
Só tô esperando o Lambreta chegar de São Paulo.
Porra, tu tá transando com o Lambreta?, disse Zequinha.
As ferramentas dele tão todas aqui.
Aqui!?, disse Zequinha. Você tá louco.

Eu ri.
Quais são os ferros que você tem?, perguntou Zequinha. Uma Thompson lata de goiabada, uma carabina doze, de cano serrado, e duas magnum.
Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?
Esperando o dia raiar para comer farofa de macumba, disse Pereba. Ele faria sucesso falando daquele jeito na TV, ia matar as pessoas de rir.
Fumamos. Esvaziamos uma pitu.
Posso ver o material?, disse Zequinha.
Descemos pelas escadas, o elevador não funcionava e fomos no apartamento de Dona Candinha. Batemos. A velha abriu a porta.
Dona Candinha, boa noite, vim apanhar aquele pacote.
O Lambreta já chegou?, disse a preta velha.
Já, eu disse, está lá em cima.
A velha trouxe o pacote, caminhando com esforço. O peso era demais para ela. Cuidado, meus filhos, ela disse.
Subimos pelas escadas e voltamos para o meu apartamento. Abri o pacote. Armei primeiro a lata de goiabada e dei pro Zequinha segurar. Me amarro nessa máquina, tarratátátátá!, disse Zequinha.
É antiga mas não falha, eu disse.

Zequinha pegou a magnum. Jóia, jóia, ele disse. Depois segurou a doze, colocou a culatra no ombro e disse: ainda dou um tiro com esta belezinha nos peitos de um tira, bem de perto, sabe como é, pra jogar o puto de costas na parede e deixar ele pregado lá.
Botamos tudo em cima da mesa e ficamos olhando. Fumamos mais um pouco.
Quando é que vocês vão usar o material?, disse Zequinha.
Dia 2. Vamos estourar um banco na Penha. O Lambreta quer fazer o primeiro gol do ano.
Ele é um cara vaidoso, disse Zequinha.
É vaidoso mas merece. Já trabalhou em São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Vitória, Niterói, pra não falar aqui no Rio. Mais de trinta bancos.
É, mas dizem que ele dá o bozó, disse Zequinha.
Não sei se dá, nem tenho peito de perguntar. Pra cima de mim nunca veio com frescuras.
Você já viu ele com mulher?, disse Zequinha.
Não, nunca vi. Sei lá, pode ser verdade, mas que importa?
Homem não deve dar o cu. Ainda mais um cara importante como o Lambreta, disse Zequinha.
Cara importante faz o que quer, eu disse.
É verdade, disse Zequinha.
Ficamos calados, fumando.




Os ferros na mão e a gente nada, disse Zequinha.
O material é do Lambreta. E aonde é que a gente ia usar ele numa hora destas?
Zequinha chupou ar fingindo que tinha coisas entre os dentes. Acho que ele também estava com fome.
Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de jóia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora.
O fumo acabou. A cachaça também. Começou a chover. Lá se foi a tua farofa, disse Pereba.
Que casa? Você tem alguma em vista?
Não, mas tá cheio de casa de rico por aí. A gente puxa um carro e sai procurando.
Coloquei a lata de goiabada numa saca ele feira, junto com a munição. Dei uma magnum pro Pereba, outra pro Zequinha. Prendi a carabina no cinto, o cano para baixo e vesti uma capa. Apanhei três meias de mulher e uma tesoura. Vamos, eu disse.

Puxamos um Opala. Seguimos para os lados de São Conrado. Passamos várias casas que não davam pé, ou tavam muito perto da rua ou tinham gente demais. Até que achamos o lugar perfeito. Tinha na frente um jardim grande e a casa ficava lá no fundo, isolada. A gente ouvia barulho de música de carnaval, mas poucas vozes cantando. Botamos as meias na cara. Cortei com a tesoura os buracos dos olhos. Entramos pela porta principal.
Eles estavam bebendo e dançando num salão quando viram a gente.
É um assalto, gritei bem alto, para abafar o som da vitrola. Se vocês ficarem quietos ninguém se machuca. Você aí, apaga essa porra dessa vitrola!
Pereba e Zequinha foram procurar os empregados e vieram com três garções e duas cozinheiras. Deita todo mundo, eu disse.
Contei. Eram vinte e cinco pessoas. Todos deitados em silêncio, quietos, como se não estivessem sendo vistos nem vendo nada.
Tem mais alguém em casa?, eu perguntei.
Minha mãe. Ela está lá em cima no quarto. É uma senhora doente, disse uma mulher toda enfeitada, de vestido longo vermelho. Devia ser a dona da casa.
Crianças?
Estão em Cabo Frio, com os tios.
Gonçalves, vai lá em cima com a gordinha e traz a mãe dela.
Gonçalves?, disse Pereba.
É você mesmo. Tu não sabe mais o teu nome, ô burro? Pereba pegou a mulher e subiu as escadas.
Inocêncio, amarra os barbados.
Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou.

Revistamos os sujeitos. Muito pouca grana. Os putos estavam cheios de cartões de crédito e talões de cheques. Os relógios eram bons, de ouro e platina. Arrancamos as jóias das mulheres. Um bocado de ouro e brilhante. Botamos tudo na saca.
Pereba desceu as escadas sozinho.
Cadê as mulheres?, eu disse.
Engrossaram e eu tive que botar respeito.
Subi. A gordinha estava na cama, as roupas rasgadas, a língua de fora. Mortinha. Pra que ficou de flozô e não deu logo? O Pereba tava atrasado. Além de fudida, mal paga. Limpei as jóias. A velha tava no corredor, caída no chão. Também tinha batido as botas. Toda penteada, aquele cabelão armado, pintado de louro, de roupa nova, rosto encarquilhado, esperando o ano novo, mas já tava mais pra lá do que pra cá. Acho que morreu de susto. Arranquei os colares, broches e anéis. Tinha um anel que não saía. Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal. Depois limpei o cu na colcha, botei as calças e desci.

Vamos comer, eu disse, botando a fronha dentro da saca. Os homens e mulheres no chão estavam todos quietos e encagaçados, como carneirinhos. Para assustar ainda mais eu disse, o puto que se mexer eu estouro os miolos.
Então, de repente, um deles disse, calmamente, não se irritem, levem o que quiserem não faremos nada.
Fiquei olhando para ele. Usava um lenço de seda colorida em volta do pescoço.
Podem também comer e beber à vontade, ele disse.
Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.

Como é seu nome?
Maurício, ele disse.
Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?
Ele se levantou. Desamarrei os braços dele.
Muito obrigado, ele disse. Vê-se que o senhor é um homem educado, instruído. Os senhores podem ir embora, que não daremos queixa à polícia. Ele disse isso olhando para os outros, que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz, calma minha gente, já levei este bunda suja no papo.
Inocêncio, você já acabou de comer? Me traz uma perna de peru dessas aí. Em cima de uma mesa tinha comida que dava para alimentar o presídio inteiro. Comi a perna de peru. Apanhei a carabina doze e carreguei os dois canos.

Seu Maurício, quer fazer o favor de chegar perto da parede? Ele se encostou na parede. Encostado não, não, uns dois metros de distância. Mais um pouquinho para cá. Aí. Muito obrigado.
Atirei bem no meio do peito dele, esvaziando os dois canos, aquele tremendo trovão. O impacto jogou o cara com força contra a parede. Ele foi escorregando lentamente e ficou sentado no chão. No peito dele tinha um buraco que dava para colocar um panetone.
Viu, não grudou o cara na parede, porra nenhuma.
Tem que ser na madeira, numa porta. Parede não dá, Zequinha disse.

Os caras deitados no chão estavam de olhos fechados, nem se mexiam. Não se ouvia nada, a não ser os arrotos do Pereba.
Você aí, levante-se, disse Zequinha. O sacana tinha escolhido um cara magrinho, de cabelos compridos.
Por favor, o sujeito disse, bem baixinho. Fica de costas para a parede, disse Zequinha.
Carreguei os dois canos da doze. Atira você, o coice dela machucou o meu ombro. Apóia bem a culatra senão ela te quebra a clavícula.
Vê como esse vai grudar. Zequinha atirou. O cara voou, os pés saíram do chão, foi bonito, como se ele tivesse dado um salto para trás. Bateu com estrondo na porta e ficou ali grudado. Foi pouco tempo, mas o corpo do cara ficou preso pelo chumbo grosso na madeira.
Eu não disse? Zequinha esfregou ó ombro dolorido. Esse canhão é foda.




Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba.
Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto.
E você... Inocêncio?
Acho que vou papar aquela moreninha.
A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá.
Vamos embora, eu disse. Enchemos toalhas e fronhas com comidas e objetos.
Muito obrigado pela cooperação de todos, eu disse. Ninguém respondeu.
Saímos. Entramos no Opala e voltamos para casa.
Disse para o Pereba, larga o rodante numa rua deserta de Botafogo, pega um táxi e volta. Eu e Zequinha saltamos.
Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com o material, pelas escadas imundas e arrebentadas.
Fudido mas é Zona Sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis?
Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.
Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.
Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.
Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo."

Rubem Fonseca
Texto extraído do livro "Feliz Ano Novo", Editora Artenova – Rio de Janeiro, 1975.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

"Tudo é vaidade, tudo é poeira e vento que passa"...




Livro do Eclesiastes

Vaidade de vaidades, diz o pregador, vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.
Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol?
Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece.
Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu.
O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus circuitos.
Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr.
Todas as coisas são trabalhosas; o homem não o pode exprimir; os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir.
O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.
Há alguma coisa de que se possa dizer: Vê, isto é novo? Já foi nos séculos passados, que foram antes de nós.
Já não há lembrança das coisas que precederam, e das coisas que hão de ser também delas não haverá lembrança, entre os que hão de vir depois.

(Eclsiastes 1, 2-11)

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Escreva uma carta meu amor...


Viciada em correspondência desde jovem, eu, particularmente, não consigo entender como sinal de civilização o fim das cartas manuscritas. A última carta que recebi foi em setembro passado. Uma prima distante queria notícias. Peguei caneta e papel e fiz questão de escrever palavras de cortesia e amizade. A carta saiu decente, com prosa legível.  Só minha letra é que saiu esquisita em razão do desuso.

Nos Estados Unidos esse tipo de escrita foi extinto. Na Europa não é diferente. Uma fração de seis em cada dez espanhóis não lembra a última vez que recebeu uma carta ou um cartão postal. Com os novos recursos de e-mail e a modernização dos serviços de telefonia ninguém mais quer saber dos Correios batendo em sua porta. 

Nesse nosso tempo de pressa e instantaneidade, quem tem nteresse em escrever ou ler textos em letra cursiva, não passa de "dinossauro", analfabeto digital ou coisa pior. 

Não me importo. A verdade é que tenho me lembrado com nostalgia e saudade do prazer que é receber e responder uma carta. Sei que com a idade e a indiferença geral que nos rodeia, talvez eu esteja a ficar piegas...Talvez, mas não posso negar que tenho muita saudade da excitação de abrir o envelope, desdobrar a folha e ler frases carinhosas.

Acontece que não há mais cartas a ler ou escrever e nada me faz esquecer da percepção desse fim.

sábado, 5 de setembro de 2015

Você participaria de uma associação dos admiradores de Nietzsche?


Além de curiosidade, atenção e interesse, sempre tive verdadeira admiração por tudo que Nietzsche* escreveu por meio de metáforas, ironias e aforismos a respeito de religião, moral, cultura contemporânea, filosofia e ciência.
Mesmo sendo parte do lado cristão, misericordioso, compassivo, fraco, derrotado ou, como ele dizia, «feminino», o lado que Nietzsche condena e despreza, aprecio cada frase, cada linha do seu pensamento.
Gostaria até de fundar uma associação dos admiradores de Nietzsche na internet para discutir sua obra com outros leitores. Acredito que seu brilhante legado filosófico não perdeu o poder de inquietar, polemizar e, sobretudo, inspirar.
Ganhei de presente o “Nietzsche para Estressados”, um pequeno manual publicado no Brasil pela editora Sextante, que reúne 99 máximas do gênio alemão e sua aplicação a várias situações do dia a dia. No livro, cada capítulo é iniciado por um aforismo de Nietzsche, seguido de uma interpretação atual feita por Allan Percy, o autor da síntese.

Abaixo, os 99 aforismos compilados por Allan Percy.

1 — Quem tem uma razão de viver é capaz de suportar qualquer coisa.

2 — O destino dos seres humano é feito de momentos felizes e não de épocas felizes.

3 — Nós nos sentimos bem em meio à natureza porque ela não nos julga.

4 — Precisamos pagar pela imortalidade e morrer várias vezes enquanto estamos vivos.

5 — O valor que damos ao infortúnio é tão grande que, se dizemos a alguém “Como você é feliz!”, em geral somos contestados.

6 — Nossos tesouro está na colmeia de nosso conhecimento. Estamos sempre voltados a essa direção, pois somos insetos alados da natureza, coletores do mel da mente.

7 — A palavra mais ofensiva e a carta mais grosseira são melhores e mais educadas que o silêncio.

8 — Nossa honra não é construída por nossa origem, mas por nosso fim.

9 — O homem que imagina ser completamente bom é um idiota.

10 — As pessoas que nos fazem confidências se acham automaticamente no direito de ouvir as nossas

11 — Precisamos amar a nós mesmos para sermos capazes de nos tolerar e não levar uma vida errante.

12 — Só quem constrói o futuro tem o direito de julgar o passado.

13 — Alegrando-se por nossa alegria, sofrendo por nosso sofrimento — assim se faz um amigo.

14 — Não devemos ter mais inimigos que as pessoas dignas de ódio, mas tampouco devemos ter inimigos dignos de desprezo. É importante nos orgulharmos de nossos inimigos.

15 — O sucesso sempre foi um grande mentiroso.

16 — O homem é algo a ser superado. Ele é uma ponte, não um objetivo final.

17 — Falar muito de si mesmo pode ser uma forma de se ocultar.

18 — As pessoas nos castigam por nossas virtudes. Só perdoam sinceramente nossos erros.

19 — O reino dos céus é uma condição do coração e não algo que cai na terra ou que surge depois da morte.

20 — O homem é, antes de tudo, um animal que julga.

21 — A melhor arma contra o inimigo é outro inimigo.

22 — Os maiores êxitos não são os que fazem mais ruído e sim nossas horas mais silenciosas.

23 — O indivíduo sempre lutou para não ser absorvido por sua tribo. Se fizer isso, você se verá sozinho com frequência e, às vezes, assustado. Mas o privilégio de ser você mesmo não tem preço.

24 — Quem é ativo aprende sozinho.

25 — Nossas opiniões são a pele na qual queremos ser vistos.

26 — Não há razão para buscar o sofrimento, mas, se ele surgir em sua vida, não tenha medo: encare-o de frente e com a cabeça erguida.

27 — A razão começa na cozinha.

28 — O futuro influi no presente da mesma maneira que o passado.

29 — Não deveríamos tentar deter a pedra que já começou a rolar morro abaixo; o melhor é dar-lhe impulso.

30 — A maneira mais eficaz de corromper o jovem é ensiná-lo a admirar aqueles que pensam como ele e não os que pensam de forma diferente.

31 — Toda queixa contém em si uma agressão.

32 — No amor sempre existe algo de loucura e na loucura sempre existe algo de razão.

33 — Quem deseja aprender a voar deve primeiro aprender a caminhar, a correr, a escalar e a dançar. Não se aprende a voar voando.

34 — Quem luta contra monstros deve ter cuidado para não se transformar em um deles.

35 — São muitas as verdades e, por esse motivo, não existe verdade alguma.

36 — A mentira mais comum é a que o homem usa para enganar a si mesmo.

37 — Deveríamos considerar perdido o dia em que não dançamos nenhuma vez.

38 — Há mais sabedoria no seu corpo do que na sua filosofia mais profunda.

39 — Se ficar olhando muito tempo para o abismo olhará para você.

40 — As posições extremas não são seguidas de posições moderadas, e sim de posições contrárias.

41 — Preciso de companheiros, mas de companheiros vivos, não de cadáveres que eu tenha que levar nas costas por toda parte.

42 — Eis a tarefa mais difícil: fechar a mão aberta do amor e ser modesto como doador.

43 — A arrogância por parte de quem tem mérito nos parece mais ofensiva que a arrogância de quem não o tem: o próprio mérito é ofensivo

44 — Todos os grandes pensamentos são concebidos ao se caminhar

45 — Quem não sabe guardar suas opiniões no gelo não deveria entrar em debates acalorados.

46 — Dois grandes espetáculos são muitas vezes suficientes para curar uma pessoa apaixonada.

47 — Quem declara que o outro é idiota fica chateado quando, no final, descobre que isso não é verdade.

48 — Amigos deveriam ser mestres em adivinhar e calar: não se deve querer saber tudo.

49 — Usar as mesmas palavras não é garantia de entendimento. É preciso ter experiências em comum com alguém.

50 — Estava só e não fazia outra coisa além de encontrar-se consigo mesmo. Então, aproveitou sua solidão e pensou em coisas muito boas por várias horas.

51 — A potência intelectual de um homem se mede pelo humor que ele é capaz de manifestar.

52 — Gosto dos valentes, mas não basta ser um espadachim: também é preciso saber a quem ferir. E, muitas vezes, abster-se demonstra mais bravura, reservando-se para um inimigo mais digno.

53 — De que vale o ronronar de alguém que não sabe amar, como um gato?

54 — Para chegar a ser sábio, é preciso querer experimentar certas vivências. Mas isso é muito perigoso. Mais de um sábio foi devorado nessa tentativa.

55 — O cérebro verdadeiramente original não é o que enxerga algo novo antes de todo mundo, mas o que olha para coisas velhas e conhecidas, já vistas e revistas por todos, como se fossem novas. Quem descobre algo é normalmente este ser sem originalidade e sem cérebro chamado sorte.

56 — Quem não dispõe de dois terços do dia é um escravo.

57 — O melhor meio de ajudar pessoas muito confusas e deixá-las mais tranquilas é elogiá-las de forma veemente.

58 — O homem amadurece quando reencontra a seriedade que demonstrava em suas brincadeiras de criança.

59 — Ninguém é tão louco que não possa encontrar outro louco que o entenda.

60 — Na maior parte das vezes que não aceitamos uma opinião, isso acontece por causa do tom em que ela foi manifestada.

61 — Acredito que os animais veem o homem como um ser igual a eles que perdeu, de forma extraordinariamente perigosa, a sanidade intelectual animal. Ou seja: veem o homem como um animal irracional, um animal que sorri, que chora, um animal infeliz.

62 — Antes de se casar, pergunte a si mesmo: serei capaz de manter uma boa conversa com essa pessoa até a velhice? Todo o resto é passageiro num matrimônio.

63 — É muito difícil os homens entenderem sua ignorância no que diz respeito a eles mesmos.

64 — Pobre do pensador que não é o jardineiro, mas apenas o canteiro de suas plantas.

65 — Um poeta escreveu em sua porta: “Quem entrar aqui me honrará. Quem não entrar me proporcionará um prazer”.

66 — A verdade é que amamos a vida não porque estamos acostumados a ela, mas porque estamos acostumados com o amor.

67 — O homem é a causa criativa de tudo o que acontece.

68 — Seus maiores bens são seus sonhos.

69 — Quem não sabe dar nada não sabe sentir nada.

70 — As ilusões são certamente prazeres dispendiosos, mas a destruição delas é mais dispendiosa ainda.

71 — A essência de toda arte bela, de arte grandiosa, é a gratidão.

72 — Não é raro encontrar cópias de grandes homens. E, como acontece com os quadros, a maior parte das pessoas parece mais interessada nas cópias do que nos originais.

73 — Quem não teve um bom pai deve procurar um.

74 — Os poços mais profundos vivem suas experiências lentamente: esperam um bom tempo até saberem o que caiu em suas profundezas.

75 — Quando temos muitas coisas para guardar nele, o dia tem 100 bolsos.

76 — Uma alma delicada se sente mal quando sabe que receberá agradecimentos. Uma alma grosseira se sente mal quando sabe que precisa agradecer a alguém.

77 — Não se pode odiar enquanto se menospreza. Não se pode odiar mais intensamente um indivíduo desprezado do que um igual ou superior.

78 — Quantos homens sabem observar? E, desses poucos que sabem, quantos observam a si próprios? “Cada pessoa é o ser mais distante de si mesmo.”

79 — A guerra emburrece o vencedor e deixa o vencido rancoroso.

80 — Cada mestre não tem mais que um aluno e esse aluno lhe será infiel, pois está predestinado a ser mestre também.

81 — O mundo real é muito menor que o mundo da imaginação.

82 — Se você for magoado por um amigo, diga a ele: “Eu o perdoo pelo que me fez, mas como poderia perdoá-lo pelo que fez a si mesmo?”

83 — A esperança é muito mais estimulante que a sorte.

84 — O que não nos mata nos fortalece.

85 — Quem vê mal sempre vê pouco. Quem escuta mal sempre escuta demais.

86 — Toda vez que me elevo, sou perseguido por um cachorro chamado Ego.

87 — Todo idealismo perante a necessidade é um engano.

88 — Você tem o seu caminho. Eu tenho o meu. O caminho correto e único não existe.

89 — Toda convicção é uma prisão.

90 — Nossa vida nos parece muito mais bonita quando deixamos de compará-la com as dos outros.

91 — As pessoas esquecem de seus erros depois de confessá-los ao outro, mas o outro normalmente não se esquece.

92 — Eis a fórmula da felicidade: um sim, um não, uma linha reta, uma meta.

93 — A melhor maneira de começar o dia é se comprometer a fazer feliz ao menos uma pessoa antes de o sol se pôr.

94 — A simplicidade e a naturalidade são o objetivo supremo e último da cultura.

95 — A vida não é muito curta para que fiquemos entediados?

96 — Não atacamos apenas para machucar o outro, para vencê-lo, mas, algumas vezes, pelo simples desejo de adquirir consciência de nossa força.

97 — Nossas carências são os melhores professores, mas nunca mostramos gratidão diante dos bons mestres.

98 — Quem fica remoendo alguma coisa se comporta de maneira tão tola quanto o cachorro que morde a pedra.

99 — O amor não é consolo — é luz.

*Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 1844, na cidade alemã de Röcken. Aos 25 anos, já era professor de filologia clássica. No entanto, sua atividade docente foi interrompida em 1870, quanto estourou a Guerra Franco-Prussiana. Nietzsche participou do conflito como enfermeiro, mas foi obrigado a abandonar Guerra por causa de uma disenteria, da qual nunca se recuperou totalmente. Obrigado a se aposentar prematuramente por conta de sequelas da doença, Nietzsche viveu na Riviera francesa e no norte da Itália, lugares que considerava ideais para pensar e escrever. Sozinho e frustrado por suas obras não alcançarem o sucesso desejado, foi vítima de seus primeiros acessos de loucura em 1889, quando morava em Turim e estava praticamente cego. Morreu em 1900, depois de longas temporadas em clínicas psiquiátricas.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Quem é o escritor nacional? E o nosso livro favorito?



Será que Machado de Assis é o nosso escritor nacional? O cara? Sinceramente não sei. E tenho quase certeza que ninguém perguntou isso aos brasileiros.

Eu votaria em Machado e faria campanha, mas sei que há outros grandes autores no páreo, caso de Aluisio Azevedo, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Dyonélio Machado,  Jorge Amado, Cecília Meirelles, Carlos Drummond de Andrade, Erico Verissimo, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Mário Quintana e tantos outros...  Esta seria uma grande eleição.

A maioria dos outros países tem seu escritor nacional. Na Alemanha, o lugar é de Goethe; na Espanha, de Miguel de Cervantes; na Itália, de Dante; na Inglaterra, de Shakespeare. Na França realizou-se uma sondagem recentemente que deu o primeiro lugar a Victor Hugo. Há alguns anos, também por meio de pesquisa, a escolha  europeia foi Shakespeare em primeiro e Cervantes no segundo lugar. Em Portugal, o pódio ficou assim: Camões, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco e Fernando Pessoa. 

No Brasil, poderíamos escolher o escritor e o  livro da preferência nacional. Eu votaria fechado: Machado como o escritor e "Dom Casmurro" como livro favorito. Acho, no entanto, que a disputa, nas duas corridas, seria acirradíssima, tamanho o número de obras-primas que temos: Vidas Secas,  Grande Sertão:Veredas, O Cortiço, Capitães de Areia, Macunaíma, Alguma Poesia, Olhai os Lírios no Campo, Os Sertões, etc etc etc. 

sábado, 15 de agosto de 2015

Vamos fazer uma "selfie"?


 
Tenho muitos amigos e coisa mais preciosa não há. Alguns são celebridades — Ricardo Noblat, Gerson Camarotti, Eliane Cantanhêde, Miriam Leitão, Heraldo Pereira e Cristina Lemos... Fico pensando se conseguem ir a algum lugar sem que ninguém possa reconhecê-los. Acho que não. Quando somos reconhecidos temos o dever de falar, ouvir, aconselhar, partilhar e sorrir felizes como perdizes. E quando várias pessoas, ao mesmo tempo, fazem fila para tirar “selfies”?Essa história da “selfie” deve tirar qualquer um do sério. Pois é. Será que o verdadeiro bálsamo é ser anônimo, ficar sossegado em um canto, sem sorrir; sem chorar e sem se fazer notar? E quem saberá?  

sábado, 8 de agosto de 2015

Coração duro, homem maduro

    
Coração duro, homem maduro
 
1. Começo te dizendo que não tenho nada contra manipular, assim como não tenho nada contra ser manipulado; ser instrumento da vontade de terceiros é condição da existência, ninguém escapa a isso, e acho que as coisas, quando se passam desse jeito, se passam como não poderiam deixar de passar (a falta de recato não é minha, é da vida). Mas te advirto, Paula: a partir de agora, não conte mais comigo como tua ferramenta.

2. Você me deu muitas coisas, me cumulou de atenções (...). Não quero discutir os motivos da tua generosidade, me limito a um formal agradecimento, recusando contudo, a todo risco, te fazer a credora que pode ainda chegar e me cobrar: "você não tem o direito de fazer isso". Fazer isso ou aquilo é problema meu, e não te devo explicações.

3. Nem foi preciso fazer um voto de pobreza, mas fiz há muito o voto de ignorância, e hoje, beirando os quarenta, estou fazendo também o meu voto de castidade. Você tem razão, Paula: não chego sequer a conservador, sou simplesmente um obscurantista. Mas deixe este obscurantista em paz, afinal, ele nunca se preocupou em fazer proselitismo.

4. (...) É preciso saber ouvir os gemidos da juventude: em geral, vocês reclamam é pela ausência de uma autoridade forte, mas eu, que nada tenho a impor, entenda isso, Paula, decididamente não quero te governar.

5. (...) Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou "incapaz de curtir pessoas maravilhosas". Sou incapaz mesmo, não gosto de "pessoas maravilhosas", não gosto de pessoas, para abreviar minhas preferências. (...)

6. No pardieiro que é este mundo, onde a sensibilidade, como de resto a consciência, não passa de uma insuspeitada degenerescência, certos espíritos só podiam mesmo se dar muito mal na vida; mas encontrei, Paula, esquivo, o meu abrigo: coração duro, homem maduro. (...)


(«O ventre seco», de Raduan Nassar, do livro de contos Menina a Caminho, 1997/Estado Civil

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Hoje, 31 de julho, completamos 34 anos de casamento



"O amor é uma luz que não deixa escurecer a vida". Camilo Castelo Branco.