quinta-feira, 27 de março de 2014

As Mortes Sucessivas, de Adélia Prado


Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
´deixa, tá bom assim´.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.

Poema integra o livro "Bagagem", de Adélia Prado, publicado pela Editora Record que reedita toda a obra da poeta.

PS: Em 2006, muita gente chorou quando a escritora mineira Adélia Prado leu, pela primeira vez, "As Mortes Sucessivas" para a platéia da 4.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).  Momento inesquecível e emocionante.

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