A vida e o Direito: breve manual de instruções
Autor: Luís Roberto Barroso
I.
Introdução
Eu poderia gastar um longo tempo descrevendo todos
os sentimentos bons que vieram ao meu espírito ao ser escolhido patrono de uma
turma extraordinária como a de vocês. Mas nós somos – vocês e eu – militantes
da revolução da brevidade. Acreditamos na utopia de que em algum lugar do
futuro juristas falarão menos, escreverão menos e não serão tão apaixonados
pela própria voz.
Por
isso, em lugar de muitas palavras, basta que vejam o brilho dos meus olhos e
sintam a emoção genuína da minha voz. E ninguém terá dúvida da felicidade
imensa que me proporcionaram. Celebramos esta noite, nessa despedida
provisória, o pacto que unirá nossas vidas para sempre, selado pelos valores
que compartilhamos.
É
lugar comum dizer-se que a vida vem sem manual de instruções. Porém, não
resisti à tentação – mais que isso, à ilimitada pretensão – de sanar essa
omissão. Relevem a insensatez. Ela é fruto do meu afeto. Por certo, ninguém
vive a vida dos outros. Cada um descobre, ao longo do caminho, as suas próprias
verdades. Vai aqui, ainda assim, no curto espaço de tempo que me impus, um guia
breve com ideias essenciais ligadas à vida e ao Direito.
II. A regra nº 1
No
nosso primeiro dia de aula eu lhes narrei o multicitado "caso do arremesso
de anão". Como se lembrarão, em uma localidade próxima a Paris, uma casa
noturna realizava um evento, um torneio no qual os participantes procuravam
atirar um anão, um deficiente físico de baixa altura, à maior distância
possível. O vencedor levava o grande prêmio da noite. Compreensivelmente
horrorizado com a prática, o Prefeito Municipal interditou a atividade.
Após
recursos, idas e vindas, o Conselho de Estado francês confirmou a proibição. Na
ocasião, dizia-lhes eu, o Conselho afirmou que se aquele pobre homem abria mão
de sua dignidade humana, deixando-se arremessar como se fora um objeto e não um
sujeito de direitos, cabia ao Estado intervir para restabelecer a sua dignidade
perdida. Em meio ao assentimento geral, eu observava que a história não havia
terminado ainda.
E
em seguida, contava que o anão recorrera em todas as instâncias possíveis,
chegando até mesmo à Comissão de Direitos Humanos da ONU, procurando reverter a
proibição. Sustentava ele que não se sentia – o trocadilho é inevitável –
diminuído com aquela prática. Pelo contrário.
Pela
primeira vez em toda a sua vida ele se sentia realizado. Tinha um emprego,
amigos, ganhava salário e gorjetas, e nunca fora tão feliz. A decisão do
Conselho o obrigava a voltar para o mundo onde vivia esquecido e invisível.
Após
eu narrar a segunda parte da história, todos nos sentíamos divididos em relação
a qual seria a solução correta. E ali, naquele primeiro encontro, nós
estabelecemos que para quem escolhia viver no mundo do Direito esta era a regra
nº 1: nunca forme uma opinião sem antes ouvir os dois lados.
III.
A regra nº 2
Nós
vivemos em um mundo complexo e plural. Como bem ilustra o nosso exemplo
anterior, cada um é feliz à sua maneira. A vida pode ser vista de múltiplos
pontos de observação. Narro-lhes uma história que li recentemente e que
considero uma boa alegoria. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska,
tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres.
Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava,
passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso.
Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: "Não é que eu
nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me
perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi
que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você
existe, me tire dessa situação, salve a minha vida". Diante de tal
depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui,
deveria ter passado a acreditar". E o ateu responde: "Nada disso!
Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós.
Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles
que eu devo a minha vida". Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto
aos fatos, apenas sobre como interpretá-los. Quem está certo? Onde está a
verdade? Na frase feliz da escritora Anais Nin, “nós não vemos as coisas como
elas são, nós as vemos como nós somos”. Para viver uma vida boa, uma vida
completa, cada um deve procurar o bem, o correto e o justo. Mas sem presunção
ou arrogância. Sem desconsiderar o outro. Aqui a nossa regra nº 2: a verdade
não tem dono.
IV. A regra nº 3
Uma
vez, um sultão poderoso sonhou que havia perdido todos os dentes. Intrigado,
mandou chamar um sábio que o ajudasse a interpretar o sonho. O sábio fez um ar
sombrio e exclamou: "Uma desgraça, Majestade. Os dentes perdidos
significam que Vossa Alteza irá assistir a morte de todos os seus
parentes". Extremamente contrariado, o Sultão mandou aplicar cem
chibatadas no sábio agourento. Em seguida, mandou chamar outro sábio. Este, ao
ouvir o sonho, falou com voz excitada: "Vejo uma grande felicidade,
Majestade. Vossa Alteza irá viver mais do que todos os seus parentes".
Exultante com a revelação, o Sultão mandou pagar ao sábio cem moedas de ouro.
Um cortesão que assistira a ambas as cenas vira-se para o segundo sábio e lhe
diz: "Não consigo entender. Sua resposta foi exatamente igual à do
primeiro sábio. O outro foi castigado e você foi premiado". Ao que o
segundo sábio respondeu: "a diferença não está no que eu falei, mas em
como falei". Pois assim é. Na vida, não basta ter razão: é preciso saber
levar. É possível embrulhar os nossos pontos de vista em papel áspero e com
espinhos, revelando indiferença aos sentimentos alheios. Mas, sem qualquer
sacrifício do seu conteúdo, é possível, também, embalá-los em papel suave, que
revele consideração pelo outro. Esta a nossa regra nº 3: o modo como se fala
faz toda a diferença.
V.
A regra nº 4
Nós
vivemos tempos difíceis. É impossível esconder a sensação de que há espaços na
vida brasileira em que o mal venceu. Domínios em que não parecem fazer sentido
noções como patriotismo, idealismo ou respeito ao próximo. Mas a história da
humanidade demonstra o contrário. O processo civilizatório segue o seu curso
como um rio subterrâneo, impulsionado pela energia positiva que vem desde o
início dos tempos. Uma história que nos trouxe de um mundo primitivo de
aspereza e brutalidade à era dos direitos humanos. É o bem que vence no final.
Se não acabou bem, é porque não chegou ao fim. O fato de acontecerem tantas
coisas tristes e erradas não nos dispensa de procurarmos agir com integridade e
correção. Estes não são valores instrumentais, mas fins em si mesmos. São
requisitos para uma vida boa. Portanto, independentemente do que estiver
acontecendo à sua volta, faça o melhor papel que puder. A virtude não precisa
de plateia, de aplauso ou de reconhecimento. A virtude é a sua própria
recompensa. Eis a nossa regra nº 4: seja bom e correto mesmo quando ninguém
estiver olhando.
VI.
A regra nº 5
Em
uma de suas fábulas, Esopo conta a história de um galo que após intensa disputa
derrotou o oponente, tornando-se o rei do galinheiro. O galo vencido,
dignamente, preparou-se para deixar o terreiro. O vencedor, vaidoso, subiu ao
ponto mais alto do telhado e pôs-se a cantar aos ventos a sua vitória. Chamou a
atenção de uma águia, que arrebatou-o em vôo rasante, pondo fim ao seu triunfo
e à sua vida. E, assim, o galo aparentemente vencido reinou discretamente, por
muito tempo. A moral dessa história, como próprio das fábulas, é bem simples:
devemos ser altivos na derrota e humildes na vitória. Humildade não significa
pedir licença para viver a própria vida, mas tão-somente abster-se de se exibir
e de ostentar. Ao lado da humildade, há outra virtude que eleva o espírito e
traz felicidade: é a gratidão. Mas atenção, a gratidão é presa fácil do tempo:
tem memória curta (Benjamin Constant) e envelhece depressa (Aristóteles).
Portanto, nessa matéria, sejam rápidos no gatilho. Agradecer, de coração, enriquece
quem oferece e quem recebe.
Em
quase todos os meus discursos de formatura, desde que a vida começou a me
oferecer este presente, eu incluo a passagem que se segue, e que é pertinente
aqui. "As coisas não caem do céu. É preciso ir buscá-las. Correr atrás,
mergulhar fundo, voar alto. Muitas vezes, será necessário voltar ao ponto de
partida e começar tudo de novo. As coisas, eu repito, não caem do céu. Mas
quando, após haverem empenhado cérebro, nervos e coração, chegarem à vitória
final, saboreiem o sucesso gota a gota. Sem medo, sem culpa e em paz. É uma
delícia. Sem esquecer, no entanto, que ninguém é bom demais. Que ninguém é bom
sozinho. E que, no fundo no fundo, por paradoxal que pareça, as coisas caem
mesmo é do céu, e é preciso agradecer". Esta a nossa regra nº 5: ninguém é
bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.
VII.
Conclusão
Eis
então as cláusulas do nosso pacto, nosso pequeno manual de instruções:
1.
Nunca forme uma opinião sem ouvir os dois lados;
2.
A verdade não tem dono;
3.
O modo como se fala faz toda a diferença;
4.
Seja bom e correto mesmo quando ninguém estiver olhando;
5.
Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho e é preciso agradecer.
Aqui
nos despedimos. Quando meu filho caçula tinha 15 anos e foi passar um semestre
em um colégio interno fora, como parte do seu aprendizado de vida, eu dei a ele
alguns conselhos. Pai gosta de dar conselho. E como vocês são meus filhos
espirituais, peço licença aos pais de vocês para repassá-los textualmente, a
cada um, com toda a energia positiva do meu afeto:
(i)
Fique vivo;
(ii)
Fique inteiro;
(iii)
Seja bom-caráter;
(iv)
Seja educado; e
(v)
Aproveite a vida, com alegria e leveza.
Vão em paz. Sejam abençoados. Façam o mundo melhor.
E lembrem-se da advertência inspirada de Disraeli: "A vida é muito curta
para ser pequena".