quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

A elegância é eterna, por João Pereira Coutinho

Fazer dieta é uma declaração de guerra à nossa humanidade imperfeita e mortal    
 
Estou em dieta há dois meses. A minha vida já não faz sentido. No início, tomado por um heroísmo absurdo, fiz um corte abrupto em certos venenos corporais. Passou uma semana. Passaram duas.
Na terceira, como acontece a certos mutilados de guerra, comecei a sentir as minhas dores fantasmagóricas nas pupilas gustativas. O vinho. 
O chocolate. Os doces. Sonhava com eles, acordava sem eles.
É este o principal problema da dieta: podemos nos afastar das tentações, mas as tentações, em representação mental, maquinal, infernal, nunca se afastam de nós.
Ilustração de quatro pessoas nuas com sobrepeso em vermelho e preto. A primeira é uma pessoa de perfil. A segunda está de frente, com o rosto virado para o lado e uma mão no ombro. A terceira está deitada se servindo com um cacho de uvas. A quarta é uma pessoa sentada com a cabeça apoiada em uma das mãos
Angelo Abu/Folhapress
Caminhando por uma rua de Lisboa, passei por uma pastelaria. Parei dois segundos, só para respirar aquele ar —uma mistura de ovos, açúcar, frutas secas. Continuei a minha caminhada, chorando como um órfão de Dickens. Fazer dieta em certos países, como na Inglaterra, pode ser uma bênção. Em Portugal, ou no Brasil, é uma mortificação pessoal.
E para que tanto esforço? Por que motivo desprezamos tão intensamente a figura simpática do bom velho gordo?
A história é antiga, explica Christopher E. Forth em obra que me acompanha durante o exílio. Intitula-se “Fat: A Cultural History of the Stuff of Life” e serve para acabar com a ilusão de que gordura é formosura. Ou, pelo menos, foi um dia.
Nunca foi. Os gordos têm vários séculos de cultura a conspirar contra eles. Para os gregos, que legaram ao mundo as formas corporais perfeitas que ainda hoje são padrão de beleza, o problema da gordura não era apenas estético; era intelectual. Quem se deixa dominar pelos apetites abandona a luz cristalina da razão.
A ligação primordial estava feita entre possuir um corpo generoso e ser comandado por uma cabeça bestial, no sentido animalesco da palavra.
Com o cristianismo, pouco mudou. Como adorar a Deus e, ao mesmo tempo, adorar os prazeres materiais que existem cá em baixo?
São incontáveis os pais da Igreja para quem um corpo rotundo asfixiava literalmente a alma, impedindo o crente de se elevar até aos céus. Jesus, que se saiba, era magro. As representações que nos chegaram do filho de Deus denunciam uma elegância que, antes de ser física, é sobretudo metafísica.
Poderia pensar-se que, depois da Idade Média, a guerra ao corpo abrandaria. E que a modernidade, com o aburguesamento correspondente, revalorizasse as formas circulares.
O problema é que o Renascimento é assim chamado por procurar reviver os valores clássicos. Na estatuária, na pintura, na filosofia. E na desconfiança espartana perante os gordos. Na sua “A Cidade do Sol”, Tommaso Campanella propunha a eliminação da espécie, seguindo as práticas viris e militares da antiga Esparta.
Mas foi nos séculos 18 e 19 que a hostilidade ao gordo se cristalizou. Sobretudo por contraposição aos ideais de beleza de povos não ocidentais (e não brancos) que passaram a ocupar a atenção, e a inquietação, do homem ocidental.
Na África ou na Ásia, os corpos generosos eram a prova evidente de que o gosto não era uniforme. Mas os ocidentais, sem surpresas, não aplaudiram esse pluralismo estético.
Com a soberba própria dos elegantes, trataram de ver naquelas proporções um sinal de barbarismo e, palavra terrível, uma ameaça de degeneração para a raça branca. O resto da história é tragicamente conhecido.
Hoje, a guerra à gordura pode ser justificada com critérios mais científicos. A saúde, sim, sempre a saúde, essa deusa pagã perante a qual todos nos curvamos.
Mas o livro notável de Christopher E. Forth serve para vermos como a lipofobia (o medo da gordura) participa de uma raiz comum: uma vontade utópica de transcender a matéria e alcançar uma espécie de perfeição etérea, acima das contingências. Sempre assim foi.
A dieta, nesse sentido, não é uma declaração de guerra à gordura. É uma declaração de guerra à nossa humanidade imperfeita e mortal. 
Valerá a pena?
No livro, Forth revisita as hilariantes discussões dos doutores da Igreja sobre o estado do corpo no momento da ressurreição. Quando isso acontecer, teremos a mesma fisionomia que tivemos em vida?
Ou haverá, digamos, uma lipoaspiração celestial para que possamos enfrentar a eternidade mais leves e sorridentes?
Santo Agostinho tranquilizou os crentes: quando entrarmos no paraíso, teremos o corpo que sempre desejamos ter.
Obrigado, meu sábio de Hipona. Era só o que eu precisava escutar para entrar na pastelaria.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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