Assisto, mudo, enquanto eles se divertem. Talvez mais do que aquilo que dizem, é o que insinuam que magoa, e o paternalismo ácido com que dão a entender. Algumas vezes percebe-se que falam disto entre eles quando não estou, que se divertem à minha custa, que usam histórias pessoais, episódios privados, informações confidenciais se ainda houvesse confidências. Falam disto como se eu tivesse prestado provas públicas e chumbado gaguejando, como se isto tivesse acontecido para seu (deles) divertimento e proveito. Atiçam, atacam, adjectivam.
A ideia é sempre uma variante sobre a minha ingenuidade, jogada contra o cinismo normal de quem saia de casa em dois mil e oito. Discutem cochichando as «vantagens comparativas», há quem ria e quem suspire e pegam no meu nome como se fosse um trapo pela lama. Dizem que só eu é que não vejo a graça que isto tem, porque sou «doutro tempo» e quis avançar sem ter pé por um rio agreste, armado de «ideias» que são ideias imbecis, gastas, desconformes ao mundo. Explicam que o meu «atomismo» chega a ser de gargalhada numa sociedade que funciona em grupos, «there is a such a thing as a society», e eu com umas metáforas pífias no meio da multidão.
Riem, e depois riem para dentro, e o álcool sai pelas narinas, criam diminutivos, alcunhas, designações chocarreiras. Elogiam-me, como se dá um passo atrás na dança, para depois virarem o elogio contra mim, virtudes inúteis e grotescas quando ninguém precisa delas, ninguém precisa a tal ponto que deixam de ser virtudes, são sinais de nascença, que para nada servem e talvez se arranquem, nem dói muito. Utilizam os verbos no pretérito, fazem perguntas retóricas, dizem «fazias cá alguma falta» porque lhes sirvo de momo, as coisas em que esta pessoa acredita, nadar em oceanos sem sequer saber nadar em riachos, confiado na compaixão e outras estupidezes, não te vás embora que queremos rir mais um bocadinho...
Umas vezes usam frases cunhadas em conversas anteriores, em que eu não estava, de que eu não soube, mas em que fui dado como exemplo, dissecado nas patetices que fiz e faço e apontado como caso de loucos, «eu não estou doudo», como é que esta pessoa imaginou que alguma vez, este idiota, e serenamente acrescentam que a legalidade está reposta, que agora as coisas são como deviam, afastado o erro estatístico que fui, o motivo de gozo, o caso nunca visto.
Que eu tenha coragem de sair de casa, isso os espanta, quando estive lá tão bem durante tanto tempo, metido entre fofos lençóis, «o menino dorme, tudo o mais acabou», para quê de cara lavada sair à rua quando ainda não houve anedota melhor e as pessoas se lembram da penúltima, tudo o que vales reduzido a um facto que te reduz, a tua insignificância, a tua mania das grandezas quando és nulidade, e um tão britânico súbdito, tão atento ao ridículo, sem se aperceber do ridículo em que caía, de que não há vida privada mas vida de botequim, em que todos os teus «triunfos e encantos» são desfeitos em nada por uma frase, por um gracejo, pela simples realidade soberana dos que riem e dos que choram, a imensa alegria dos primeiros com a imensa, oh que palavra, desgraça dos segundos...
Há quem morra de pé e há quem morra de rastos e há quem nunca morra, pelo menos aqui, havemos de morrer mas vêm outros, que tomam os nossos lugares, de ti fazemos memória se o teu nome ainda durar, improvável isso, tudo o que construíres de dia será desfeito de noite, tens direito também a uma penélope, mas ver sem tocar, ver sem tocar, quando não houver quem dance ainda há a dança e o nosso riso e escárnio porque tu quiseste entrar onde não pertences, e o teu fracasso é de entre todos os folguedos o que mais diverte.
Vai embora, com teus aforismos e ameaças, boa noite querido príncipe que assim te julgas ainda, sangue azul no teu sangue escarlate, enobrecido talvez pela queda do cavalo, boa noite, boa noite doce príncipe, sem tu perderes como saberíamos nós que somos os vitoriosos?