O PESSIMISMO COMO DEVER CIVIL
JOSÉ EDUARDO FARIA
Passou despercebido dos cadernos culturais dos jornais, em 2016, o 60.º aniversário de Vila dos Confins, um livro singular de Mário Palmério, nascido da confluência entre ficção e realidade e que trata da política miúda protagonizada por coronéis, jagunços e cabos eleitorais com suas práticas conhecidas, como trocas de favores, compra de votos, intimidações e fraudes de todo tipo.
O livro, cujo enredo é a manipulação do processo político num remoto lugar do sertão mineiro, fez sua época, levou o autor à Academia Brasileira de Letras, mas hoje é pouco lembrado. Talvez porque o universo de que trata, uma cidadezinha dos grotões recém-alçada à condição de município, tenha sido substituído por Brasília, a capital do País inaugurada poucos anos após sua primeira edição.
O livro, cujo enredo é a manipulação do processo político num remoto lugar do sertão mineiro, fez sua época, levou o autor à Academia Brasileira de Letras, mas hoje é pouco lembrado. Talvez porque o universo de que trata, uma cidadezinha dos grotões recém-alçada à condição de município, tenha sido substituído por Brasília, a capital do País inaugurada poucos anos após sua primeira edição.
Apesar das diferenças de escala, há muita coisa em comum nos dois universos – até porque, em Brasília, do chefe do Executivo aos integrantes do Legislativo, passando pela juíza aposentada que exibe título jamais conquistado ou pelo luminar jurídico que, se confirmadas as denúncias de plágio, careceria de reputação ilibada e notório saber jurídico para ascender a ministro de Corte Suprema, todos olham o mundo não do alto de uma montanha, mas da altura de um rodapé, como os personagens de Vila dos Confins.
Ainda que espertos, a ponto de patrocinarem projetos de lei que retiram prerrogativas da Justiça Eleitoral e revogam normas penais com base nas quais podem ser condenados por seus ilícitos, os personagens dos confins brasilienses são intelectualmente toscos e moralmente abjetos. Praticam uma política degradada, em que não há espaço para o exercício de virtudes públicas e compromissos cívicos – uma política praticada num círculo fechado, hipócrita e distante do mundo real.
Esse cenário encerra questões incômodas. Será a sociedade brasileira tão ruim quanto seus representantes? Quase três décadas depois da promulgação de uma Constituição que sepultou o autoritarismo, o que explica incapacidade do regime democrático para construir um poder público legítimo e eficiente? Por que as instituições não conseguem evitar a captura do poder público por presidiários, corporações, parlamentares esfaimados e empreiteiras? O denominador comum dessas indagações é um certo surrealismo.
Quem optou por Dilma em 2014 também votou no esquema que levou Angorás, Cajus e Lupinões a ocupar cargos estratégicos. A democracia conta com sistemas de contrapesos para proteger os interesses da sociedade e evitar efeitos desastrosos de decisões desinformadas. Mas eles às vezes falham. E quanto mais duradoura é uma decisão tomada por sistemas falhos, maiores são as dificuldades a superar. De que modo um processo democrático pode ser representativo se seus sistemas de controle nem sempre funcionam, como se está vendo com as tentativas de frear as investigações do órgão encarregado pela Constituição de defender a ordem jurídica e a moralidade pública?
Assim, mesmo que a economia volte a crescer, as decisões políticas desastrosas tomadas por dirigentes e parlamentares com escasso capital político acarretam indignação e revolta. O perigo de tanta aversão à política é o da sedução aos encantos da antipolítica. É a ideia de que a política seria prescindível, podendo ser substituída por gestores. Obviamente, ainda que precise ser submetida a um processo de depuração ética, em hipótese alguma a política é prescindível, pois implica diferenças, conflitos, aprendizado com frustrações e direitos, por um lado, e negociações, compromissos, alianças, pactos e interesses compartilhados, por outro. Esforçando-se para superar os desencantos que o tempo carrega e acreditando que a participação democrática abre a todos a possibilidade de ascender ao poder e governar, há quem diga que a depuração ética pressupõe não só renovação da classe política, mas, igualmente, seu rejuvenescimento.
Consciente da importância das noções de pluralismo ideológico e da alternância do poder para a efetividade do regime democrático, também há quem lembre que a regeneração democrática requer uma reavaliação das formas de legitimação das relações entre governantes e governados. E há ainda quem diga que, na medida em que a democracia é um mecanismo de vigilância, crítica e protesto, permitindo assim a identificação das fontes de corrupção, a política é a aprendizagem da decepção. Quanto mais eficiente é seu funcionamento, mais decepções e desenganos ela propicia.
São argumentos conhecidos. Para assegurar o sucesso do processo de regeneração democrática e permitir que a política volte a estar à altura do que dela se espera, em matéria de representatividade e responsabilidade, é preciso reduzir o fenômeno político aos seus componentes básicos – as relações de força, de autoridade, de mando e obediência – e retomar questões básicas sobre, por exemplo, a definição do tipo de sociedade que desejamos construir pela via democrática e as condições para que se possam converter alternativas partidárias em poder efetivo. Evidentemente, essas questões só têm sentido se forem discutidas com base na realidade brasileira, da qual a grande Vila dos Confins que se tornou o Planalto Central e seus patéticos protagonistas fazem parte.
Diante dos confins do cerrado, é preciso ser pessimista – mais precisamente, é preciso valorizar o ceticismo da razão, como condição para entender a situação em que o País se encontra e tentar mudá-lo. Há 40 anos, quando a Itália estava em situação dramática, Norberto Bobbio afirmou que, nos períodos de crise institucional, o pessimismo é um dever civil. "Deixo para os fanáticos, aqueles que desejam a catástrofe, e para os insensatos, aqueles que pensam que no fim tudo se acomoda, o prazer de serem otimistas. O pessimismo é um dever civil porque só um pessimismo radical da razão pode despertar aqueles que, de um lado ou de outro, mostram que ainda não se deram conta de que o sono da razão gera monstros", escreveu.
O Estado de S.Paulo 21/02/2017