domingo, 4 de dezembro de 2016

Poemas de Ferreira Gullar


Ferreira Gullar

Ferreira Gullar morreu hoje, 4 de dezembro de 2016. Era o maior poeta vivo da literatura brasileira. Sua poesia engajada – ele sempre foi do Partidão - era um importante instrumento de denúncia social desde 1950. Ele pertencia ao Centro Popular de Cultura (CPC), grupo de intelectuais de esquerda criado em 1961, no Rio de Janeiro, cujo objetivo era defender o caráter coletivo e didático da obra de arte, bem como o engajamento político do artista. Perseguido pela ditadura militar, Ferreira Gullar exilou-se na Argentina durante os anos de repressão. Em 2014, aos 84 anos, foi eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, ocupando a Cadeira de número 37, que pertencera ao escritor Ivan Junqueira, morto nesse mesmo ano.
Não há vagas 


Não há vagas

O preço do feijão

não cabe no poema. O preço

do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

a luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras

– porque o poema, senhores,

está fechado:

“não há vagas”

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

a fruta sem preço

O poema, senhores,

não fede

nem cheira.





Poema: Traduzir-se – Ferreira Gullar

Traduzir-se

Uma parte de mim

é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.

Uma parte de mim

é multidão:

outra parte estranheza

e solidão.

Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.

Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.

Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.

Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.

Traduzir-se uma parte

na outra parte

– que é uma questão

de vida ou morte –

será arte?



Poema: No corpo – Ferreira Gullar

No corpo

De que vale tentar reconstruir com palavras

O que o verão levou

Entre nuvens e risos

Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,

o apelo da noite

Agora são apenas esta

contração (este clarão)

do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.





Poema: Poemas Neoconcretos I – Ferreira Gullar

Poemas Neoconcretos I

mar azul

mar azul marco azul

mar azul marco azul barco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul

mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul



Poema: Aprendizado – Ferreira Gullar

Aprendizado

Do mesmo modo que te abriste à alegria

abre-te agora ao sofrimento

que é fruto dela

e seu avesso ardente.

Do mesmo modo

que da alegria foste

ao fundo

e te perdeste nela

e te achaste

nessa perda

deixa que a dor se exerça agora

sem mentiras

nem desculpas

e em tua carne vaporize

toda ilusão

que a vida só consome

o que a alimenta.



Poema: Um Instante – Ferreira Gullar

Aqui me tenho/ Como não me conheço/ nem me quis/ sem começo/ nem fim/ aqui me tenho/ sem mim/ nada lembro/ nem sei/ à luz presente/ sou apenas um bicho/ transparente.

Poema: Subversiva – Ferreira Gullar

Subversiva

A poesia

Quando chega

Não respeita nada.

Nem pai nem mãe.

Quando ela chega

De qualquer de seus abismos

Desconhece o Estado e a Sociedade Civil

Infringe o Código de Águas

Relincha

Como puta

Nova

Em frente ao Palácio da Alvorada.

E só depois

Reconsidera: beija

Nos olhos os que ganham mal

Embala no colo

Os que têm sede de felicidade

E de justiça.

E promete incendiar o país.





Poema: Os mortos – Ferreira Gullar

Os mortos

os mortos vêem o mundo

pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,

com nossos ouvidos,

certas sinfonias

algum bater de portas,

ventanias

Ausentes

de corpo e alma

misturam o seu ao nosso riso

se de fato

quando vivos

acharam a mesma graça





Poema: Cantiga para não morrer – Ferreira Gullar

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,

moça branca como a neve,

me leve.

Se acaso você não possa

me carregar pela mão,

menina branca de neve,

me leve no coração.

Se no coração não possa

por acaso me levar,

moça de sonho e de neve,

me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa

por tanta coisa que leve

já viva em seu pensamento,

menina branca de neve,

me leve no esquecimento.



Poema: Prometi-me Possuí-la – Ferreira Gullar

Prometi-me Possuí-la

Prometi-me possuí-la muito embora

ela me redimisse ou me cegasse.

Busquei-a na catástrofe da aurora,

e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora

da água e do musgo, solitária nasce.

Mas sempre que me acerco vai-se embora

como se temesse ou me odiasse.

Assim persigo-a, lúcido e demente.

Se por detrás da tarde transparente

seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!

Vocabulário e corpo — deuses frágeis —

eu colho a ausência que me queima as mãos.

[Poemas Portugueses]





Poema: Extravio – Ferreira Gullar

Extravio

Onde começo, onde acabo,

se o que está fora está dentro

como num círculo cuja

periferia é o centro?

Estou disperso nas coisas,

nas pessoas, nas gavetas:

de repente encontro ali

partes de mim: risos, vértebras.

Estou desfeito nas nuvens:

vejo do alto a cidade

e em cada esquina um menino,

que sou eu mesmo, a chamar-me.

Extraviei-me no tempo.

Onde estarão meus pedaços?

Muito se foi com os amigos

que já não ouvem nem falam.

Estou disperso nos vivos,

em seu corpo, em seu olfato,

onde durmo feito aroma

ou voz que também não fala.

Ah, ser somente o presente:

esta manhã, esta sala.





Poema: Madrugada – Ferreira Gullar

Madrugada

Do fundo de meu quarto, do fundo

de meu corpo

clandestino

ouço (não vejo) ouço

crescer no osso e no músculo da noite

a noite

a noite ocidental obscenamente acesa

sobre meu país dividido em classes.





Neste Leito de Ausência – Ferreira Gullar

Neste Leito de Ausência

Neste leito de ausência em que me esqueço

desperta o longo rio solitário:

se ele cresce de mim, se dele cresço,

mal sabe o coração desnecessário.

O rio corre e vai sem ter começo

nem foz, e o curso, que é constante, é vário.

Vai nas águas levando, involuntário,

luas onde me acordo e me adormeço.

Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:

duplo espelho — o precário no precário.

Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,

de silêncio em silêncio me apodreço.

Entre o que é rosa e lodo necessário,

passa um rio sem foz e sem começo.

[Poemas Portugueses]





Meu povo, meu poema – Ferreira Gullar

Meu povo, meu poema

Meu povo e meu poema crescem juntos

como cresce no fruto

a árvore nova

No povo meu poema vai nascendo

como no canavial

nasce verde o açúcar

No povo meu poema está maduro

como o sol

na garganta do futuro

Meu povo em meu poema

se reflete

como a espiga se funde em terra fértil

Ao povo seu poema aqui devolvo

menos como quem canta

do que planta



Poema: MINHA MEDIDA – Ferreira Gullar

MINHA MEDIDA

Meu espaço é o dia

de braços abertos

tocando a fímbria de uma e outra noite

o dia

que gira

colado ao planeta

e que sustenta numa das mãos a aurora

e na outra

um crepúsculo de Buenos Aires

Meu espaço, cara,

é o dia terrestre

quer o conduzam os pássaros do mar

ou os comboios da Estrada de Ferro Central do Brasil

o dia

medido mais pelo pulso

do que

pelo meu relógio de pulso

Meu espaço — desmedido —

é o nosso pessoal aí, é nossa

gente,

de braços abertos tocando a fímbria

de uma e outra fome,

o povo, cara,

que numa das mãos sustenta a festa

e na outra

uma bomba de tempo.

Fonte: site Escola Educação

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