terça-feira, 30 de setembro de 2014

Querida Giovana!

 
Desde o dia especial em que você rasgou o ventre de sua Mãe e chegou ao mundo não canso de pensar que, mesmo sendo um bebê, você renovou a esperança e a confiança no futuro de todos da família. Seus gritinhos insistentes (ou seriam  exigentes?) mudaram nossa vida e fizeram com que nossos corações passassem a bater com mais força e mais coragem.

Seus olhos são azuis, seu cabelo cai em cachos por sua testa. É como se Deus nos tivesse enviado um anjo de rara beleza. Tanto a vida, como o tempo, são atravessados pelos ciclos, uns de sombra, outros de luz e muitos de escuridão. Ao chegar na família, você inaugurou um ciclo de luz.

Lembro o momento que te vi pela primeira vez. Sua mãe estava na maca, saindo da sala de cirurgia. Ela segurava você nos braços e, com todo o cuidado, cobria seus olhos com uma das mãos para impedir que a claridade te assustasse. Ao lado da maca, protegendo você e sua mãe, vinha seu pai, com um sorriso enorme espalhado pelo rosto.

Você nasceu no dia do aniversário do seu avô, Alberto. Desde então, ele mudou. De ateu degenerado, seu avô passou a acreditar em astrologia, numerologia, ligações interplanetárias e até em vidas passadas, mesmo sabendo que elas não contam tempo para a aposentadoria.

“Minha neta e eu nascemos em um mesmo dia, somos de um mesmo signo e isso é um sinal”, ele disse. “Sinal de que você, seu tolinho, nunca mais terá festa de aniversário”, pensei. Ainda bem que seu avô não lê pensamento. Digo “ainda” porque desde o teu nascimento ele está cada vez mais animado,  confiando que pode mais. E sorridente, muito sorridente. A pessoa ficou insuportavelmente feliz...

Nunca vi seu avô tão metido, como se o tempo não tivesse passado e ele ainda fosse o jovem que conheci há 35 anos. Nessa batida, ele acabará acreditando que pode até ler pensamentos. Deus me livre! E guarde! Isso não pode acontecer. É que sua avó tem alguns segredos. Sim, é verdade e não  há mal nisso.

Um adulto tem entre 40 e 60 mil pensamentos por dia, não tem problema guardar uma parte deles só para a gente. Seríamos todos loucos se nosso cérebro tivesse de processar todos os pensamentos conscientemente. Por essa razão, a maior parte deles funciona automaticamente e nem aparece no índice de eventos do nosso dia. Esse assunto, porém, exige muitos cuidados....

Não é bom deixar qualquer um conhecer seus pensamentos. As coisas que a gente pensa, ou mesmo as que a gente pensou um dia, não devem ser assunto de conversa com ninguém. O processo de pensar e de proteger o nosso pensamento, faz parte do que chamamos de nossa personalidade, nosso ser interior.

Daqui a pouco você entenderá um pouco mais sobre a dádiva divina de ser uma pessoa única em todo o universo. Entenderá, igualmente, que é sábio ser justo e tolo mentir. Não precisa sair por aí contando tudo a todos, apenas cuide para que só palavras verdadeiras possam sair de sua boca.

Vamos voltar a falar disso um dia. Agora, dorme e brinca. Você inda nem fez quatro anos. Haverá tempo para tudo. Sei que seu futuro será brilhante, como o da sua Mãe e do seu Pai, de quem, certamente, você receberá os traços de caráter, a teimosia, a lucidez e a força de vontade.

De sua mãe desejo que você receba o senso de justiça e o compromisso com a verdade. De seu pai, o legado da bondade, da capacidade de perdoar, de amar e de acreditar. Eu e seu avô esperamos deixar boas lembranças em sua memória.

Acredito que estamos cumprindo bem nosso papel como seres humanos. Tivemos o privilégio de ter sua mãe como nossa filha. Foi ela que nos ensinou a viver com mais amor e mais generosidade. Não há como quitar uma dádiva dessas. 

Então é isso minha neta, vendo sua mãe te educar  com tanto afeto penso que ninguém precisa de nada, além do que você já tem, para ser feliz.

Um grande beijo da sua avó.

 

domingo, 28 de setembro de 2014

"Ninguém sabe o que sou quando rumino"

          
Hoje, 28 de setembro, faz 106 anos que morreu Machado de Assis, um dos maiores escritores de todos os tempos. Inquieto, lúcido, irônico, Machado escrevia como  filósofo, mas tinha humor e estilo, principalmente quando empenhava-se  em fazer uma digressão, definir com precisão um gesto, ou um detalhe qualquer, como se escrever também pudesse ser brincadeira leve e descontraída.
 
"Ninguém sabe o que sou quando rumino", costumava dizer este gênio brasileiro que nasceu na pobreza, tinha pele mestiça e que teve de batalhar cada milímetro dos avanços que conquistou na vida.  Fundador da Academia Brasileira de Letras, deixou uma obra literária monumental.
Quem não se pergunta de vez em quando se Capitu (Dom Casmurro) foi mesmo uma adúltera? E quem não se lembra do anárquico Brás Cubas e da dedicatória de suas memórias, em louvor "ao verme que primeiro roeu as frias carnes de meu cadáver"?
É famosa a passagem do livro Esaú e Jacó em que o dono da Confeitaria do Império tem o azar de mandar pintar uma nova tabuleta para seu estabelecimento justamente às vésperas da proclamação da República. E agora, que fazer? Trocar o nome para Confeitaria da República? Mas... e se sobreviesse nova reviravolta política? Uma idéia foi adotar o nome "Confeitaria do Governo". Mas, nesse caso, as oposições não poderiam vir a apedrejá-la? O jeito foi rebatizar a casa com o nome do proprietário. Virou a "Confeitaria do Custódio". É isso, Machado é uma maravilha...
 

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Evangelho segundo São Mateus






Evangelho segundo São Mateus

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola: «O reino dos Céus pode comparar-se a um pro­prie­tário, que saiu muito cedo a contratar trabalhadores para a sua vinha. Ajustou com eles um denário por dia e mandou-os para a sua vinha. Saiu a meia-manhã, viu outros que estavam na praça ociosos e disse-lhes: ‘Ide vós também para a minha vinha e dar-vos-ei o que for justo’. E eles foram. Voltou a sair, por volta do meio-dia e pelas três horas da tarde, e fez o mesmo. Saindo ao cair da tarde, encontrou ainda outros que estavam parados e disse-lhes: ‘Porque ficais aqui todo o dia sem trabalhar?’. Eles responderam-lhe: ‘Ninguém nos contratou’. Ele disse-lhes: ‘Ide vós também para a minha vinha’. Ao anoitecer, o dono da vinha disse ao capataz: «Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário, a começar pelos últimos e a acabar nos primeiros’. Vieram os do entardecer e receberam um denário cada um. Quando vieram os primeiros, julgaram que iam receber mais, mas receberam também um denário cada um. Depois de o terem recebido, começaram a murmurar contra o proprietário, dizen­do: ‘Estes últimos trabalharam só uma hora e deste-lhes a mesma paga que a nós, que suportámos o peso do dia e o calor’. Mas o proprietário respondeu a um deles: ‘Amigo, em nada te prejudico. Não foi um denário que ajustaste comigo? Leva o que é teu e segue o teu caminho. Eu quero dar a este último tanto como a ti. Não me será permitido fazer o que quero do que é meu? Ou serão maus os teus olhos porque eu sou bom?’. Assim, os últimos serão os primei­ros e os primeiros serão os últimos».
 
Da Bíblia Sagrada

domingo, 21 de setembro de 2014

Os Dez Cantos d'Os Lusíadas



É sério: um ser humano pode ser considerado "inculto" em Portugal por não saber o número de cantos dos Lusíadas. É suposto que será avaliado como "culto" se tiver lido o poema épico de Luís de Camões, publicado em 1572 . Mesmo não concordando com essa medida ilusória de conhecimento, estou postando o resumo de cada um dos dez cantos deste texto monumental. Para ler na íntegra, ou baixar o conteúdo grátis: http://bit.ly/1ylwDfl

Os Dez Cantos d'Os Lusíadas
 
O poeta indica o assunto global da obra, pede inspiração às ninfas do Tejo e dedica o poema ao Rei D. Sebastião. Na estrofe 19 inicia a narração de viagem de Vasco da Gama, referindo brevemente que a Armada já se encontra no Oceano Índico, no momento em que os deuses do Olimpo se reúnem em Concílio convocado por Júpiter, para decidirem se os Portugueses deverão chegar à Índia.
Com o apoio de Vénus e Marte e apesar da oposição de Baco, a decisão é favorável aos Portugueses que, entretanto, chegam à Ilha de Moçambique. Aí Baco prepara-lhes várias ciladas que culminam com o fornecimento de um piloto por ele instruído para os conduzir ao perigoso porto de Quíloa. Vénus intervém, afastando a armada do perigo e fazendo-a retomar o caminho certo até Mombaça. No final do Canto, o poeta reflete acerca dos perigos que em toda a parte espreitam o Homem.
 
O rei de Mombaça, influenciado por Baco, convida os Portugueses a entrar no porto para os destruir. Vasco da Gama, ignorando as intenções, aceita o convite, pois os dois condenados que mandara a terra colher informações tinham regressado com uma boa notícia de ser aquela uma terra de cristãos. Na verdade, tinham sido enganados por Baco, disfarçado de sacerdote. Vénus, ajudada pelas Nereidas, afasta a Armada, da qual se põem em fuga os emissários do Rei de Mombaça e o falso piloto.
Vasco da Gama, apercebendo-se do perigo que corria, dirige uma prece a Deus. Vénus comove-se e vai pedir a Júpiter que proteja os Portugueses, ao que ele acede e, para a consolar, profetiza futuras glórias aos Lusitanos. Na sequência do pedido, Mercúrio é enviado a terra e, em sonhos, indica a Vasco da Gama o caminho até Melinde onde, entretanto, lhe prepara uma calorosa recepção. A chegada dos Portugueses a Melinde é efectivamente saudada com festejos e o Rei desta cidade visita a Armada, pedindo a Vasco da Gama que lhe conte a história do seu país.
 
Após uma invocação do poeta a Calíope, Vasco da Gama inicia a narrativa da História de Portugal. Começa por referir a situação de Portugal na Europa e a lendária história de Luso a Viriato. Segue-se a formação da nacionalidade e depois a enumeração dos feitos guerreiros dos Reis da 1.ª Dinastia, de D. Afonso Henriques a D. Fernando.
Destacam-se os episódios de Egas Moniz e da Batalha de Ourique, no reinado de D. Afonso Henriques, e o da Formosíssima Maria, da Batalha do Salado e de Inês de Castro, no reinado de D. Afonso IV.
 
Vasco da Gama prossegue a narrativa da História de Portugal. Conta agora a história da 2.ª Dinastia, desde a revolução de 1383-85, até ao momento, do reinado de D. Manuel, em que a Armada de Vasco da Gama parte para a Índia.
Após a narrativa da Revolução de 1383-85 que incide fundamentalmente na figura de Nuno Álvares Pereira e na Batalha de Aljubarrota, seguem-se os acontecimentos dos reinados de D. João II, sobretudo os relacionados com a expansão para África.
É assim que surge a narração dos preparativos da viagem à Índia, desejo que D. João II não conseguiu concretizar antes de morrer e que iria ser realizado por D. Manuel, a quem os rios Indo e Ganges apareceram em sonhos, profetizando as futuras glórias do Oriente. Este canto termina com a partida da Armada, cujos navegantes são surpreendidos pelas palavras profeticamente pessimistas de um velho que estava na praia, entre a multidão. É o episódio do Velho do Restelo.
 
Vasco da Gama prossegue a sua narrativa ao Rei de Melinde, contando agora a viagem da Armada, de Lisboa a Melinde.
É a narrativa da grande aventura marítima, em que os marinheiros observaram maravilhados ou inquietos o Cruzeiro do Sul, o Fogo de Santelmo ou a Tromba Marítima e enfrentaram perigos e obstáculos enormes como a hostilidade dos nativos, no episódio de Fernão Veloso, a fúria de um monstro, no episódio do Gigante Adamastor, a doença e a morte provocadas pelo escorbuto. O canto termina com a censura do poeta aos seus contemporâneos que desprezam a poesia.
 
Finda a narrativa de Vasco da Gama, a Armada sai de Melinde guiada por um piloto que deverá ensinar-lhe o caminho até Calecut.
 
Baco, vendo que os portugueses estão prestes a chegar à Índia, resolve pedir ajuda a Neptuno, que convoca um Concílio dos Deuses Marinhos cuja decisão é apoiar Baco e soltar os ventos para fazer afundar a Armada. É então que, enquanto os marinheiros matam despreocupadamente o tempo ouvindo Fernão Veloso contar o episódio lendário e cavaleiresco de Os Doze de Inglaterra, surge uma violenta tempestade.
Vasco da Gama vendo as suas caravelas quase perdidas, dirige uma prece a Deus e, mais uma vez, é Vénus que ajuda os Portugueses, mandando as Ninfas seduzir os ventos para os acalmar.
Dissipada a tempestade, a Armada avista Calecut e Vasco da Gama agradece a Deus. O canto termina com considerações do Poeta sobre o valor da fama e da glória conseguidas através dos grandes feitos.
 
A Armada chega a Calecut. O poeta elogia a expansão portuguesa como cruzada, criticando as nações europeias que não seguem o exemplo português. Após a descrição da Índia, conta os primeiros contactos entre os portugueses e os indianos, através de um mensageiro enviado por Vasco da Gama a anunciar a sua chegada.
O mouro Monçaíde visita a nau de Vasco da Gama e descreve Malabar, após o que o Capitão e outros nobres portugueses desembarcam e são recebidos pelo Catual e depois pelo Samorim. O Catual visita a Armada e pede a Paulo da Gama que lhe explique o significado das figuras das bandeiras portuguesas. O poeta invoca as Ninfas do Tejo e do Mondego, ao mesmo tempo que critica duramente os opressores e exploradores do povo.
 
Paulo da Gama explica ao Catual o significado dos símbolos das bandeiras portuguesas, contando-lhe episódios da História de Portugal nelas representados. Baco intervém de novo contra os portugueses, aparecendo em sonhos a um sacerdote brâmane e instigando-o através da informação de que vêm com o intuito da pilhagem.
O Samorim interroga Vasco da Gama, que acaba por regressar às naus, mas é retido no caminho pelo Catual subornado, que apenas deixa partir os portugueses depois destes lhes entregarem as fazendas que traziam. O poeta tece considerações sobre o vil poder do ouro.
 
Após vencerem algumas dificuldades, os portugueses saem de Calecut, iniciando a viagem de regresso à Pátria. Vénus decide preparar uma recompensa para os marinheiros, fazendo-os chegar à Ilha dos Amores. Para isso, manda o seu filho cúpido desfechar setas sobre as Ninfas que, feridas de Amor e pela Deusa instruídas, receberão apaixonadas os Portugueses.
A Armada avista a Ilha dos Amores e, quando os marinheiros desembarcam para caçar, vêem as ninfas que se deixam perseguir e depois seduzir. Tétis explica a Vasco da Gama a razão daquele encontro(prémio merecido pelos “longos trabalhos”), referindo as futuras glórias que lhe serão dadas a conhecer. Após a explicação da simbologia da Ilha, o poeta termina, tecendo considerações sobre a forma de alcançar a Fama.
 
As Ninfas oferecem um banquete aos portugueses. Após uma invocação do poeta a Calíope, uma ninfa faz profecias sobre as futuras vitórias dos portugueses no Oriente. Tétis conduz Vasco da Gama ao cume de um monte para lhe mostrar a Máquina do Mundo e indicar nela os lugares onde chegará o império português. Os portugueses despedem-se e regressam a Portugal.
O poeta termina, lamentando-se pelo seu destino infeliz de poeta incompreendido por aqueles a quem canta e exortando o Rei D. Sebastião a continuar a glória dos Portugueses.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

O que seria um ataque pessoal na política?

 
No calor de uma campanha eleitoral é possível definir insulto, desconstrução de imagem, campanha negativa ou assassinato de reputação? Um político criticar duramente o outro não é "ataque pessoal". É uma opinião política susceptível de contraditório que deve ser feito igualmente no campo político.
 
É livre a liberdade de opinião, de expressão e de crítica no país. E o debate é o "sal" da política. Ainda bem que há conflitos, ainda bem que há notícias deles, ainda bem que as redes sociais permitem que a sociedade possa dialogar sobre eles. A isto se chama democracia e liberdade. 
 
Se um candidato se sentiu ofendido, que procure dar resposta à altura, em lugar de apresentar lamúrias romanescas ou chorar a cântaros. Ataque pessoal seria acusar alguém sem provas de ter praticado um crime. Ou caluniá-lo sobre ato que efetivamente não praticou. 
 
Confrontar um político por ter alianças, por ter votado desta ou daquela maneira, ou dizer que ele foi filiado a este ou aquele partido, nada disso é ofensa. Biografias e declarações de renda de quem pleiteia mandatos devem ser de conhecimento público. E ascensão política exige que homens públicos aceitem, conscientemente, os riscos da exposição.
 
Não se pode exigir "silêncio" a quem cumpre a obrigação democrática de expressar suas discordâncias. Entre outras coisas, a democracia vive, essencialmente, de debate e decisões. Nada se faz, em política, sem debate e as eleições são o corolário do debate. Uma sociedade democrática vive desta dinâmica.
 
Campanha eleitoral implica troca de opiniões divergentes. O que não falta é dedo em riste. Nos políticos, e nos seres humanos de modo geral, infelizmente, os defeitos são mais frequentes que as virtudes. E acredito que haverá sempre, nesta ou naquela encruzilhada, eventuais erros e omissões deste ou daquele candidato. Ninguém é infalível.
 
Podemos aguentar algumas verdades. Somos adultos. Em todas as democracias, a maioria costuma escolher, depois de acompanhar debates e entrevistas, quem é mais autêntico, quem inspira mais confiança. Ninguém é perfeito. Contudo, é difícil tolerar candidato simulando raiva irrefletida, ou simulando indignação com crítica, para tentar esconder o que importa: ter ou não ter algo de substantivo para dizer e fazer.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

A propósito da demagogia

 
 
 
SOBRE A DEMAGOGIA DOS QUE SE PENSAM ANTI-DEMAGOGOS

Dizem os manuais que o demagogo, na sua expressão grega primitiva, era apenas o chefe ou “condutor do povo”, sem qualquer sentido pejorativo, e, como tal, se qualificavam Sólon ou Demóstenes, intimamente ligados à defesa da democracia.

Contudo, a expressão sofreu uma evolução semântica, deixando de ser uma arte neutral, principalmente depois da morte de Péricles, em 429 a.C., quando surgiram novos líderes, não ligados às antigas famílias, os quais, a partir do século seguinte, começaram a ser fortemente criticados pelos adversários dos modelos democráticos.

Por causa disso é que a expressão ganhou a atual conotação: aquele que procura dar voz aos medos e aos preconceitos do povo. Ou, para seguir as palavras de Bertrand de Jouvenel: a arte de conduzir habilmente as pessoas ao objetivo desejado, utilizando os seus conceitos de bem, mesmo quando lhe são contrários.

Aliás, já em Platão (Politeia, livro V) o nome serviu para designar o animal que chama boa às coisas que lhe agradam e más às coisas que ele detesta. Do mesmo modo, em Aristóteles (Política, livro V), onde se acentuou que o demagogo utilizava a lisonja e os artifícios oratórios.

Já no século XIX, Lincoln chegou mesmo a assinalar que é sempre possível enganar uma pessoa; que é também possível enganar todos, mas de uma só vez; mas que é impossível enganar sempre todos.

Neste contexto, Max Weber, utilizando um conceito amplo de demagogo, incluiu em tal categoria o jornalista, referindo que o mesmo substituiu o púlpito. Porque, desde que foi instaurada a democracia, o demagogo é a figura típica do chefe político no Ocidente. Uma demagogia que, depois de se transmitir pela palavra impressa e através dos jornalistas, passou para a rádio e para a televisão.

Fiquei assim estupefato quando um dos mais brilhantes artistas da demagogia moderna, o político Dr. José Pacheco Pereira, vestindo o seu hábito de jornalista de ideias, quis assumir-se como um monge da anti-demagogia, utilizando os métodos da mais caricatural escolástica. O brilhante comentarista, que tão weberianamente se desmarxizou, se for fiel à sua matriz de amigo da sabedoria, tem que meter a frase solta no contexto, a letra do texto no espírito do discurso, a parte no todo, a emoção na razão, a honra na inteligência e o sentimento na ideia.

Muito weberianamente dissertando, acrescentarei que a racionalidade tanto é a razão da ação racional referente a fins (Zweckrational), como ação racional referente a valores (Wertrational), a racionalidade em valor.

Na primeira, o indivíduo tanto é capaz de definir objetivos como de avaliar os meios mais adequados para a realização desses objetivos, numa ação social marcada pela moral de responsabilidade, onde o valor predominante é a competência. E aqui já nos situamos no campo do Estado racional-normativo ou do Estado-razão, onde domina a ação burocrática, aquela que faz nascer o poder burocrático, o poder especializado na elaboração do formalismo legal e na conservação da lei escrita e dos seus regulamentos, onde dominam a publicização, a legalização e a burocracia.

Na segunda, os indivíduos inspiram-se na convicção e não encaram as consequências previsíveis dos seus atos. É uma forma de atividade política inspirada por sistemas de valores universalistas, onde o agente atua de acordo com a moral de convicção, vivendo como pensa, sem pensar como vive, em nome da honra, isto é, sem ter em conta as consequências previsíveis dos seus atos, à maneira do que é comandado pelo dever, pela dignidade, pela beleza ou pelas diretivas religiosas.

Poderei assim concluir que o jornalista dos púlpitos dominicais corre o risco de ser duplamente demagogo, mesmo que rejeite o lume da profecia e fique apenas com metade do conceito de razão.

Logo, apenas desejarei que, de regresso em regresso, não regresse em demasia, passando para o estreito conceito de púlpito da santificada inquisição.

Pior ainda quando trata de usar os métodos dos seminaristas georgianos e dos jornais de parede da revolução cultural, esses que, retirando frases do contexto, condenaram os adversários à fogueira da diabolização adjetiva.

Os efetivos amigos da sabedoria, como o Dr. José Pacheco Pereira, porque só sabem que nada sabem, não podem parecer que têm o monopólio da inteligência, do caminho, da verdade e da democracia. Se meterem a frase no texto, o texto no contexto e a letra no espírito, certamente confessarão que se enganaram. Homens livres, livram-se dos ódios e têm a coragem de vencer o preconceito.
Texto extraído do blog Jornalismo de Ideias. Autoria: José Adelino Maltez