segunda-feira, 28 de julho de 2014

Há palavras que nos beijam...






Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


(poema de Alexandre O'Neill)

quinta-feira, 24 de julho de 2014

As Leis Fundamentais da Estupidez Humana


As leis fundamentais da estupidez humana (em italiano Le leggi fondamentali della stupidità umana), é o capítulo ( do livro que leva o mesmo nome) no qual o autor, Carlo M. Cipolla, classifica a população humana em quatro grandes grupos: 1) os inteligentes, que conseguem ter uma ação que resulta em vantagem para si e também para os outros (ainda que menor); 2) os bandidos, que tiram vantagem para si com prejuízo de terceiros;3)os tolos, que não geram, nem para si nem para os outros, vantagem ou prejuízo e 4)os estúpidos, que têm uma ação que resulta em prejuízo para si e para os outros (ainda que menor).

Além disso, o livro enuncia as cinco leis da estupidez, que definem o comportamento da estupidez na humanidade. São elas:
1)Sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos que há no mundo.
2)A probabilidade de que uma determinada pessoa seja estúpida é independente de qualquer outra característica dela mesma.
3)Uma pessoa é estúpida se ela causa um dano a outra ou a um grupo sem obter nenhum beneficio para si, ou mesmo sofrendo prejuízo.
4)As pessoas não estúpidas subvalorizam sempre o potencial nocivo das pessoas estúpidas; esquecem constantemente que em qualquer momento e lugar, e em qualquer circunstância, tratar ou associar-se com indivíduos estúpidos constitui inevitavelmente um custoso erro.
5)A pessoa estúpida é o tipo de pessoa mais perigosa que existe.

O livro foi traduzido para o espanhol (Crítica), para o francês (Balland), e para o português (Celta), com o mesmo título. Segue, abaixo, uma tradução



As Leis Fundamentais da Estupidez Humana
por Carlo M. Cipolla
traduzido do italiano por Luiz Eleno

Introdução
Capitulo 1 – A Primeira Lei Fundamental
Capitulo 2 – A Segunda Lei Fundamental
Capitulo 3 – Um intervalo técnico
Capitulo 4 – A Terceira (e áurea) Lei Fundamental
Capitulo 5 – Distribuição de frequências
Capitulo 6 – Estupidez e poder
Capitulo 7 – O poder da estupidez
Capitulo 8 – A Quarta Lei Fundamental
Capitulo 9 –Macroanálise e a Quinta Lei Fundamental
Apêndice

Introdução

As atividades humanas encontram-se, por unânime consenso, em um estado deplorável. Esta, no entanto, não é uma novidade. Olhando para trás até onde podemos, elas sempre estiveram em um estado deplorável. O pesado fardo de desgraças e misérias que os seres humanos devem suportar, seja como indivíduos, seja como membros da sociedade organizada, é substancialmente o resultado do modo extremamente improvável – e ouso dizer estúpido – pelo qual a vida foi organizada desde os seus inícios.

Desde Darwin, sabemos que compartilhamos a nossa origem com as outras espécies do reino animal, e todas as espécies, sabe-se, da lombriga ao elefante, devem suportar a sua dose cotidiana de atribulações, temores, frustrações, penas e adversidades. Os seres humanos, todavia, têm o privilégio de terem de se sujeitar a um peso adicional, a uma dose extra de atribulações cotidianas, causadas por um grupo de pessoas que pertencem ao mesmo gênero humano. Este grupo é muito mais poderoso que a Máfia ou que o Complexo industrial-militar ou que a Internacional Comunista. É um grupo não organizado, que não faz parte de nenhuma hierarquia, que não tem chefe, nem presidente, nem estatuto, mas que consegue ainda assim operar em perfeita sintonia como se fosse guiado por uma mão invisível, de tal modo que as atividades de qualquer membro contribuem potencialmente para reforçar e amplificar as atividades de todos os demais. A natureza, o caráter e o comportamento dos membros deste grupo são o argumento das páginas que seguem.

É necessário salientar neste ponto que este ensaio não é fruto de cinismo nem um exercício de derrotismo social – não mais do que o é um livro de microbiologia. As seguintes páginas são, de fato, o resultado de um esforço construtivo para investigar, conhecer e portanto, possivelmente, neutralizar uma das mais poderosas e obscuras forças que impedem o crescimento do bem-estar e da felicidade humana.

Primeiro Capítulo – A Primeira Lei Fundamental

A Primeira Lei Fundamental da estupidez humana afirma sem ambiguidade que
Sempre e inevitavelmente cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação¹.
À primeira vista esta afirmação pode parecer trivial, ou óbvia, ou até mesquinha, ou mesmo todas as três coisas juntas. No entanto, um exame mais atento revela plenamente a sua realista veracidade. Considere-se o que segue. Por mais alta que seja a estimativa quantitativa que alguém faça da estupidez humana, resta-se repetidamente e recorrentemente espantado pelo fato de que:
(a) pessoas que julgávamos no passado como racionais e inteligentes revelam-se depois, subitamente, inequívoca e irremediavelmente, estúpidas;
(b) dia após dia, com uma incessante monotonia, vêmo-nos dificultados e obstruídos em nossas próprias atividades por indivíduos teimosamente estúpidos, que aparecem repentina e inesperadamente nos lugares e nos momentos menos oportunos.
A Primeira Lei Fundamental nos impede de atribuir um valore numérico à fração de pessoas estúpidas em relação ao total da população: qualquer estimativa numérica resultaria em uma subestimação. Por isto, nas páginas seguintes denotar-se-á a quota de pessoas estúpidas no conjunto de uma população com o símbolo s.

¹ Os autores do Velho Testamento estavam cientes da existência da Primeira Lei Fundamental e a parafrasearam ao afirmar que “stultorum infinitum numerus”, mas cometeram um exagero poético. O número de pessoas estúpidas não pode ser infinito porque o número de pessoas vivas é finito. (N. do A.)

Segundo Capítulo – A Segunda Lei Fundamental

As tendências culturais predominantes hoje nos países ocidentais favorecem uma visão igualitária da Humanidade. Ama-se pensar no Homem como o produto de massa de uma linha de montagem perfeitamente organizada. A genética e a sociologia, sobretudo, esforçam-se para provar, com uma muralha impressionante de dados científicos e formulações, que todos os homens são por natureza iguais e que, se alguns são mais iguais que os outros, isto é atribuível à educação e ao ambiente social, e não à Mãe Natureza.

Trata-se de uma opinião generalizada de que pessoalmente não compartilho. É a minha firme convicção, sustentada por anos de observações e experimentos, que os homens não são iguais, que alguns são estúpidos e outros não, e que a diferença é determinada não por forças ou fatores culturais, mas por características biogenéticas da inescrutável Mãe Natureza. Alguém é estúpido da mesma forma que um outro é ruivo; alguém pertence ao grupo dos estúpidos como um outro pertence a um grupo sanguíneo. Em resumo, alguém nasce estúpido por vontade indecifrável e indiscutível da Divina Providência.

Mesmo convencido que uma fração s de seres humanos seja estúpida e que o seja por vontade da Providência, não sou um reacionário que tenta reintroduzir furtivamente discriminações de classe ou de raça. Creio fixamente que a estupidez seja uma prerrogativa indiscriminada de todo e qualquer grupo humano, e que tal prerrogativa esteja uniformemente distribuída segundo uma proporção constante. Este fato é cientificamente expresso pela Segunda Lei Fundamental, que diz que:
A probabilidade de uma certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica desta mesma pessoa.
A este propósito, a Natureza parece realmente ter superado a si mesma. É fato conhecido que a Natureza, ainda que misteriosamente, age de forma a manter constante a frequência relativa de certos fenômenos naturais. Por exemplo, quer os homens proliferem no Pólo Norte ou no Equador, quer os casais que se unem sejam bem-nutridos ou subdesenvolvidos, quer sejam negros, vermelhos, brancos ou amarelos, a relação macho-fêmea entre os recém-nascidos é constante, com uma ligeira prevalência de machos. Não sabemos como a natureza faz para obter este extraordinário resultado, mas sabemos que para obtê-lo ela deve operar com grandes números. O fato extraordinário acerca da frequência da estupidez é que a Natureza consiga fazer com que tal frequência seja sempre e em qualquer parte constante e portanto igual à probabilidade s, independentemente das dimensões do grupo, tanto que se encontra o mesmo percentual de pessoas estúpidas seja tomando-se grupos muito amplos ou grupos muito reduzidos. Nenhum outro tipo de fenômeno sujeito a observações oferece uma prova tão singular do poder da Natureza.

A prova de que a educação e o ambiente social não tem nada a ver com a probabilidade s foi fornecida por uma série de experimentos conduzidos em muitas universidades do mundo. Podemos subdividir a população de uma universidade em quatro grandes categorias: os zeladores, os funcionários, os estudantes e o corpo docente.

Todas as vezes em que se analisaram os zeladores, descobriu-se que uma fração s deles era de estúpidos. Dado que o valor de s era mais alto do que se esperava (Primeira Lei), pensou-se inicialmente, pagando tributo à moda corrente, que o fato fosse devido à pobreza das famílias das quais os zeladores geralmente provêm, e à sua escassa instrução. Mas analisando os grupos mais elevados, notou-se que a mesma porcentagem prevalecia também entre os funcionários e os estudantes. Ainda mais impressionantes foram os resultados obtidos entre o corpo docente. Seja considerando uma universidade grande ou uma pequena, um instituto famoso ou um obscuro, descobriu-se que a mesma fração s de professores era composta de estúpidos. Foi tal a surpresa com os resultados obtidos que resolveu-se estender a pesquisa a um grupo particularmente selecionado, a uma verdadeira e própria “élite”, isto é, aos ganhadores do Prêmio Nobel. O resultado confirmou os poderes superiores da Natureza: uma fração s dos Prêmios Nobel é constituída de estúpidos.

Este resultado é difícil de aceitar e digerir, mas várias evidências experimentais nos provaram a sua fundamental validade. A Segunda Lei Fundamental é uma lei de ferro e não admite exceção. O Movimento de Liberação da Mulher confirma a Segunda Lei, já que esta lei demonstra que os indivíduos estúpidos são proporcionalmente tão numerosos entre os homens quanto entre as mulheres. As populações dos países do Terceiro Mundo consolar-se-ão com a Segunda Lei, já que ela demonstra que, no final das contas, as populações ditas “desenvolvidas” não são assim tão desenvolvidas. Quer a Segunda Lei Fundamental agrade ou não, mesmo assim as suas implicações são diabolicamente inelutáveis: ela diz de fato que, quer frequentando círculos elegantes, quer refugiando-se entre os cortadores de cabeça da Polinésia, quer enclausurando-se em um mosteiro ou quer decidindo transcorrer o resto da vida na companhia de mulheres belas e luxuriosas, o fato permanece de que deveremos sempre enfrentar a mesma quantidade de gente estúpida – percentual que (de acordo com a Primeira Lei) superará sempre as mais negras previsões.

Terceiro Capítulo – Um intervalo técnico

Neste ponto é necessário esclarecer o conceito de estupidez humana e definir a dramatis persona.

Os indivíduos são caracterizados por diferentes graus de propensão a sociabilizar. Há indivíduos para os quais qualquer contato com outros indivíduos é uma dolorosa necessidade. Eles devem literalmente suportas as pessoas e as pessoas devem suportá-los No outro extremo do espectro estão os indivíduos que não podem absolutamente viver sozinhos e estão até mesmo dispostos a gastar seu tempo na companhia de pessoas que desdenham, para não ficarem sozinhos. Entre esses dois extremos, existe uma grande variedade de condições, se bem que a grande maioria das pessoas esteja mais próxima do tipo que não pode suportar a solidão e não do tipo que não tem propensão a contatos humanos. Aristóteles reconheceu este fato quando escreveu que “o homem é um animal social”, e a validade da sua afirmação é demonstrada pelo fato de que nós nos movimentamos em grupos sociais, que há mais pessoas casadas do que solteiras, que tanta riqueza e tempo sejam desperdiçados em exasperantes e maçantes cocktail parties e que à palavra solidão venha normalmente associada uma conotação negativa.

Quer pertença-se ao tipo eremita ou ao tipo mundano, deve-se de qualquer modo lidar com gente, ainda que com diversa intensidade. De vez em quando, até os eremitas encontram pessoas. Além do que, põe-se sempre em relação com os seres humanos também evitando-os. Aquilo que eu poderia ter feito por um indivíduo ou por um grupo, e que não fiz, representa um “custo-oportunidade” (isto é, um ganho perdido, ou uma perda) para aquela particular pessoa ou grupo. A moral da história é que cada um de nós tem uma conta corrente com cada um dos demais. De qualquer ação, ou não ação, cada um de nós leva um ganho ou uma perda, e ao mesmo tempo determina um ganho ou uma perda a algum outro.Os ganhos e perdas podem ser oportunamente ilustrados em um gráfico, e a figura 1 mostra o gráfico base utilizável para este escopo.


Figura 1
O gráfico refere-se a um indivíduo que chamaremos de Tício. O eixo X mede o ganho obtido por Tício em sua ação. O eixo Y mede o ganho que outra pessoa, ou grupo de pessoas, experimenta em virtude da ação de Tício. O ganho pode ser positivo, nulo ou negativo; um ganho negativo equivale a uma perda. O eixo X mede os ganhos positivos de Tício à direita do ponto O, enquanto as perdas de Tício são indicadas à esquerda do ponto O. O eixo Y, respectivamente sobre e sob o ponto O, mede os ganhos e perdas da pessoa, ou grupo de pessoas, com que Tício tem relação.

Para tornar as coisas claras, tomemos um exemplo hipotético, referindo-nos à figura 1. Tício realiza uma ação que atinge Caio. Se Tício com a sua ação consegue um ganho e Caio, pela mesma ação, sofre uma perda, a ação será registrada no gráfico por um símbolo que aparecerá em qualquer ponto da área B.

Os ganhos e perdas podem ser registrados em dólares ou francos ou liras, caso se queira, mas devem-se incluir também as recompensas e as satisfações psicológicas e emotivas, e os estresses psicológicos e emotivos. Estes são bens (ou males) imateriais, e portanto bastante difíceis de mensurar com parâmetros objetivos. A análise do tipo custo-benefício pode ajudar a resolver o problema, ainda que não completamente, mas não quero aborrecer o leitor com detalhes técnicos: uma margem de imprecisão pode prejudicar as medidas, mas não a essência do argumento. Um ponto contudo deve ficar claro. Ao considerar a ação de Tício e ao avaliar os benefícios ou perdas que Tício leva, deve-se levar em conta o sistema de valores de Tício; mas para determinar o ganho ou a perda de Caio, é absolutamente indispensável referir-se ao sistema de valores de Caio e não àquele de Tício. Frequentemente ignora-se esta norma de fair play, e muitos problemas derivam exatamente do fato de que não respeita-se este princípio de civil comportamento. Vamos recorrer mais uma vez a um exemplo banal. Tício dá uma pancada na cabeça de Caio e obtém satisfação. Tício pode talvez alegar que Caio ficou feliz por ter recebido uma pancada na cabeça. Mas é altamente provável que Caio não compartilhe a mesma opinião. Ao invés, Caio poderia considerar a pancada na sua cabeça um desagradabilíssimo acidente. Se a pancada na cabeça de Caio foi um ganho ou uma perda para Caio, cabe a Caio dizê-lo, e não a Tício.

Quarto Capítulo – A Terceira (e áurea) Lei Fundamental

A Terceira Lei Fundamental pressupõe, ainda que não o enuncie completamente, que os seres humanos pertencem a uma de quatro categorias fundamentais: os ingênuos, os inteligentes, os bandidos e os estúpidos. O leitor arguto compreenderá facilmente que estas quatro categorias correspondem às quatro áreas H, I, B, S do gráfico base (ver fig. 1 [na postagem anterior]).

Se Tício realiza uma ação e sofre uma perda, enquanto ao mesmo tempo oferece uma vantagem a Caio, o símbolo de Tício cairá no campo H: Tício agiu como ingênuo. Se Tício realiza uma ação com a qual obtém uma vantagem, e ao mesmo tempo oferece uma vantagem também a Caio, o símbolo de Tício cairá na área I: Tício agiu inteligentemente. Se Tício realiza uma ação com a qual ganha uma vantagem, causando uma perda a Caio, o ponto de Tício cairá na área B: Tício agiu como bandido. A estupidez corresponde à área S e a todas as posições no eixo Y abaixo do ponto O. A Terceira Lei Fundamental esclarece que:
Uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa um dano a uma outra pessoa ou grupo de pessoas, sem, ao mesmo tempo, obter qualquer vantagem para si ou até mesmo sofrendo uma perda.
Diante da Terceira Lei Fundamental, as pessoas sensatas reagem instintivamente com ceticismo e incredulidade. O fato é que as pessoas sensatas têm dificuldades em conceber e a compreender um comportamento irracional. Mas deixemos de lado a teoria e observemos ao invés disso o que nos acontece na prática, na vida de todos os dias. Todos nos recordamos de casos nos quais tivemos desafortunadamente de lidar com um indivíduo que buscava para si um ganho, causando-nos uma perda: deparamo-nos com um bandido. Podemos nos recordar ainda de casos nos quais um indivíduo realizou uma ação cujo resultado foi-lhe uma perda e para nós um ganho: lidamos com um ingênuo¹.

Podemos nos recordar também de casos nos quais um indivíduo realizou uma ação com a qual ambas as partes levaram vantagem: tratava-se de uma pessoa inteligente. Tais casos ocorrem continuamente. Mas refletindo bem, é preciso admitir que estes casos não representam a totalidade de eventos que caracterizam a nossa vida de todos os dias. A nossa vida é também pontuada por eventos em que sofremos perdas de dinheiro, tempo, energia, apetite, tranquilidade e bom-humor, por culpa das improváveis ações de alguma absurda criatura que aparece nos momentos mais impensáveis e inconvenientes para provocar-nos danos, frustrações e dificuldades, sem ter absolutamente nada a ganhar com aquilo que realiza. Ninguém sabe, compreende ou pode explicar por que essa absurda criatura faz o que faz. De fato, não há explicação – ou melhor – a explicação é uma só: a pessoa em questão é estúpida.

¹ Note-se a definição precisa “um indivíduo realizou uma ação”. O fato de ter sido ele a iniciar a ação é decisivo para estabelecer que ele é um ingênuo. Se tivesse sido eu a empreender a ação que determinou o meu ganho e a sua perda, a conclusão seria diferente: neste caso, eu teria sido um bandido. (N. do A.)

Quinto capítulo – Distribuição de frequências

A maior parte das pessoas não age coerentemente. Em algumas circunstâncias uma pessoa age inteligentemente e em outras aquela mesma pessoa comporta-se como ingênua. A única importante exceção à regra é representada pelas pessoas estúpidas, que normalmente mostram uma máxima propensão a uma plena coerência em todos os campos de atividade.

Deste fato não segue que pode-se assinalar no gráfico apenas as posições dos indivíduos estúpidos. Podemos calcular para toda pessoa a sua posição no plano da figura 1 [na parte 3] com base na média ponderada. Uma pessoa inteligente pode às vezes comportar-se como ingênua, como pode às vezes assumir um comportamento banditesco. Mas, como a pessoa em questão é fundamentalmente inteligente, a maior parte das suas ações terá a característica da inteligência e a sua média ponderada colocar-se-á no quadrante I do gráfico n° 1.

O fato de ser possível colocar no gráfico os indivíduos, em vez das suas ações, permite digressões sobre a frequência dos bandidos e dos estúpidos.

O perfeito bandido é aquele que, com as suas ações, causa a outros perdas equivalentes aos seus ganhos. O mais primitivo tipo de banditismo é o roubo. Uma pessoa que rouba 10.000 liras sem causar-nos danos adicionais é um bandido perfeito: perdemos 10.000 liras, ele ganha 10.000. No gráfico, os bandidos perfeitos aparecerão sobre a linha diagonal de 45 graus que divide a área B em duas subáreas perfeitamente simétricas (linha OM da figura 2).


Figura 2
Todavia, os bandidos perfeitos são relativamente poucos. A linha OM divide a área B nas duas subáreas Bi e Bs, e a grande maioria dos bandidos coloca-se em algum ponto destas duas subáreas.

Os bandidos que ocupam a área Bi são aqueles que procuram para si mesmos ganhos maiores que as perdas que causam aos outros. Todos os bandidos que ocupam uma posição na área Bi são desonestos com um elevado grau de inteligência, e quanto mais a sua posição se aproxima da parte direita do eixo X, mais características tais bandidos compartilham com a pessoa inteligente. Infelizmente, os indivíduos que ocupam a área Bi não são muito numerosos. A maior parte dos bandidos coloca-se efetivamente na área Bs. Os bandidos que introduzem-se nesta área são indivíduos cujas ações trazem-lhes vantagens inferiores às perdas causadas aos outros. Se alguém te faz cair e quebrar uma perna para roubar 10.000 liras, ou causa-te danos ao carro no valor de meio milhão de liras para roubar o som, com a qual obterá no máximo 30.000 liras, se alguém te dá um tiro de revólver e te mata só para passar uma noite em companhia da tua mulher em Monte Carlo, podemos estar certos de que não trata-se de um bandido “perfeito”. Sempre utilizando os seus parâmetros para mensurar os seus ganhos (mas usando os nossos parâmetros para mensurar as nossas perdas), ele cairá na área Bs, muito próximo ao limite da estupidez pura.

A distribuição de frequências das pessoas estúpidas é totalmente diferente da dos bandidos e dos ingênuos. Enquanto estes últimos estão na maior parte espalhados pelo espaço da respectiva área, os estúpidos estão na maior parte concentrados ao longo do eixo Y abaixo do ponto O. A razão disso é que a grande maioria das pessoas estúpidas são fundamentalmente e firmemente estúpidas – em outras palavras, eles insistem com perseverança em causar danos ou perdas a outras pessoas sem obter nenhum ganho para si, seja este positivo ou negativo. Há, no entanto, pessoas que, com suas inverossímeis ações, não apenas causam danos a outras pessoas, mas também a si mesmos. Estes formam um gênero de superestúpidos que, com base no nosso sistema de cálculo, aparecerão em qualquer ponto da área S à esquerda do eixo Y.

Sexto Capítulo– Estupidez e poder

Como todas as criaturas humanas, também os estúpidos influenciam outras pessoas com intensidades muito variadas. Alguns estúpidos causam normalmente apenas perdas limitadas, enquanto alguns conseguem causar danos impressionantes não só a um ou dois indivíduos, mas a inteiras comunidades ou sociedades. O potencial de uma pessoa estúpida criar danos depende de dois fatores principais. Antes de tudo, depende do fator genético. Alguns indivíduos herdam notáveis doses do gene da estupidez e, graças a tal hereditariedade, pertencem, desde o nascimento, à elite do seu grupo. O segundo fator que determina o potencial de uma pessoa estúpida deriva da posição de poder e de autoridade que ela ocupa na sociedade. Entre burocratas, generais, políticos, chefes de estado e homens da igreja, encontra-se a áurea proporção s de indivíduos fundamentalmente estúpidos, cuja capacidade de prejudicar o próximo foi (ou é) perigosamente acrescida pela posição de poder que ocuparam (ou ocupam).

A pergunta que frequentemente colocam-se as pessoas sensatas é de que modo e como pessoas estúpidas conseguem chegar a posições de poder e de autoridade.

Classe e casta (seja laica ou eclesiástica) foram as instituições sociais que permitiram um fluxo constante de pessoas estúpidas a posições de poder na maior parte das sociedades pré-industriais. No mundo industrial moderno, classe e casta vão perdendo cada vez mais destaque. Mas, no lugar de classe e casta, existem partidos políticos, burocracia e democracia. Em um sistema democrático, as eleições gerais são um instrumento de grande eficácia para assegurar a manutenção da fração s entre os poderosos. Recordemos que, com base na Segunda Lei, a fração s de pessoas que votam são estúpidas, e as eleições oferecem-lhes uma magnífica oportunidade para prejudicar todos os outros, sem obter nenhum ganho com suas ações. Eles atingem esse objetivo, contribuindo para a manutenção do nível s de estúpidos entre as pessoa no poder.

Sétimo capítulo – O poder da estupidez

Não é difícil compreender como o poder político ou econômico ou burocrático amplifica o potencial nocivo de uma pessoa estúpida. Mas devemos ainda explicar e entender o que rende essencialmente perigosa uma pessoa estúpida; em outras palavras, em que consiste o poder da estupidez.

Essencialmente, os estúpidos são perigosos e funestos porque as pessoas sensatas acham difícil imaginar e entender um comportamento estúpido. Uma pessoa inteligente pode entender a lógica de um bandido. As ações do bandido seguem um modelo de racionalidade: racionalidade perversa, caso queiram, mas sempre racionalidade. O bandido quer “algo mais” na sua conta. Dado que não é inteligente o bastante para inventar métodos para obter “algo mais” para si buscando ao mesmo tempo “algo mais” também para os outros, ele obterá o seu “algo mais” causando “algo menos” ao seu próximo. Tudo isso não é justo, mas é racional e, se é racional, pode ser previsto. Pode-se, em resumo, prever as ações de um bandido, as suas imundas manobras e as suas deploráveis aspirações e amiúde podem-se preparar as defesas oportunas.

Com uma pessoa estúpida tudo isso é absolutamente impossível. Como está implícito na Terceira Lei Fundamental, uma criatura estúpida perseguir-te-á sem razão, sem um plano preciso, nos momentos e nos locais mais improváveis e mais impensáveis. Não há nenhum método racional para prever se, quando, como e por que uma criatura estúpida levará adiante o seu ataque. Frente a um indivíduo estúpido, estamos completamente à sua mercê.

Já que as ações de uma pessoa estúpida não estão de acordo com as regras da racionalidade, segue que:
(a) geralmente somos tomados de surpresa pelo ataque;
(b) mesmo quando toma-se consciência do ataque, não se consegue organizar uma defesa racional, porque o ataque, por si mesmo, é desprovido de qualquer estrutura racional.
O fato de que a atividade e os movimentos de uma criatura estúpida são absolutamente erráticos e irracionais não apenas torna a defesa problemática, mas torna também extremamente difícil qualquer contra-ataque – é como tentar disparar em um objeto capaz dos mais improváveis e inimagináveis movimentos. Isso é o que Dickens e Schiller tinham em mente quando um afirmou que “com estupidez e boa digestão, o homem pode enfrentar qualquer coisa”, e o outro que “contra a estupidez até os deuses combatem em vão”.

É preciso levar em conta também uma outra circunstância. A pessoa inteligente sabe que é inteligente. O bandido está consciente de ser um bandido. O ingênuo está penosamente repleto do senso da própria ingenuidade. Ao contrário de todos estes personagens, o estúpido não sabe que é estúpido. Isto contribui fortemente a dar maior força, incidência e eficácia às suas ações devastadoras. O estúpido não é inibido por aquele sentimento que os anglossaxões chamam de self-consciousness. Com o sorriso nos lábios, como se estivesse realizando a coisa mais natural do mundo, o estúpido aparecerá improvisadamente para destroçar os teus planos, destruir a tua paz, complicar-te a vida e o trabalho, fazer-te perder dinheiro, tempo, bom-humor, apetite, produtividade – tudo isso sem malícia, sem remorso, e sem motivo. Estupidamente.

Oitavo capítulo – A Quarta Lei Fundamental

Não se deve ficar espantado se as pessoas ingênuas, isto é, aquelas que no nosso sistema caem na área H, em geral não consigam reconhecer a periculosidade das pessoas estúpidas. O fato só representa outra manifestação da sua ingenuidade. O que é verdadeiramente surpreendente é que mesmo as pessoas inteligentes e os bandidos frequentemente não conseguem identificar o poder devastador e destruidor da estupidez. É extremamente difícil explicar por que isso ocorre. Pode-se apenas conjecturar que frequentemente tanto os inteligentes quanto os bandidos, quando abordados por indivíduos estúpidos, cometem o erro de abandonar-se a sentimentos de auto-complacência e desprezo, ao invés de produzir imediatamente quantidades maiores de adrenalina e preparar as defesas.

É-se geralmente levado a acreditar que uma pessoa estúpida faça mal somente a si própria, mas isto significa enfrentar a estupidez com a ingenuidade. Às vezes, é-se tentado a associar-se com um indivíduo estúpido com o objetivo de usá-lo para os próprios objetivos. Tal manobra só pode ter efeitos desastrosos porque: (a) é baseada em uma completa incompreensão da natureza essencial da estupidez; e (b) dá à pessoa estúpida mais espaço para o exercício dos seus talentos. Alguém pode se iludir a manipular uma pessoa estúpida e, até certo ponto, pode-se até conseguir. Mas, por causa do errático comportamento do estúpido, não se pode prever todas as suas ações e reações, e em breve ver-se-á desarticulado e pulverizado por suas imprevisíveis ações.

Tudo isso é claramente sintetizado pela Quarta Lei Fundamental, que afirma que
As pessoas não estúpidas subestimam sempre o potencial nocivo das pessoas estúpidas. Em particular, os não estúpidos esquecem constantemente que, em qualquer momento e lugar, e em qualquer circunstância, tratar e/ou associar-se a indivíduos estúpidos demonstra-se infalivelmente um custosíssimo erro.
Nos séculos dos séculos, na vida pública e privada, inúmeras pessoas não levaram em conta a Quarta Lei Fundamental e isso causou incalculáveis perdas à humanidade.

Nono capítulo – Macroanálise e a Quinta Lei Fundamental

As considerações finais do capítulo precedente conduzem a uma análise do tipo “macro”, na qual, ao invés do bem-estar individual, considera-se o bem-estar da sociedade, definido, neste contexto, como a soma algébrica das condições de bem-estar individual. Uma completa compreensão da Quinta Lei Fundamental é essencial para esta análise. É necessário, por outro lado, acrescentar que, das cinco leis fundamentais, a Quinta é certamente a mais conhecida e o seu corolário é citado muito frequentemente. Ela afirma que:
A pessoa estúpida é o tipo de pessoa mais perigoso que existe.
O corolário da lei é que:
O estúpido é mais perigoso que o bandido.
A formulação da lei e do corolário ainda é do tipo “micro”. Como indicado acima, todavia, a lei e o seu corolário têm implicações de natureza “macro”. O ponto essencial a ter em conta é este: o resultado da ação de um perfeito bandido (a pessoa que cai sobre a linha OM da figura 2) representa pura e simplesmente uma transferência de riqueza e/ou bem-estar. Depois da ação de um perfeito bandido, ele terá um “positivo” na sua conta, “positivo” que equivalerá exatamente ao “negativo” que ele terá causado a uma outra pessoa. Para a sociedade no seu conjunto a situação não terá melhorado nem piorado. Se todos os membros de uma sociedade fossem bandidos perfeitos, a sociedade permaneceria em condições estagnantes, mas não haveria grandes desastres. Tudo limitar-se-ia a uma massiva transferência de riqueza e bem-estar em favor daqueles que realizaram a ação. Se todos os membros da sociedade tivessem de executar a ação em turnos regulares, não apenas a sociedade inteira, mas também os indivíduos particulares, encontrariam-se em um estado de perfeita estabilidade.

Mas quando os estúpidos colocam-se em ação, a música muda completamente. As pessoas estúpidas causam perdas a outras pessoas sem receber vantagens para si mesmos. Segue que a sociedade inteira empobrece.


Figura 3
O sistema de cálculo expresso nos gráficos base mostra que, enquanto todas as ações de indivíduos que caem à direita da linha POM (ver a figura 3) incrementam o bem-estar da sociedade, ainda que em graus diversos, as ações de todas as pessoas que caem à esquerda da mesma linha POM empobrecem a sociedade.

Em outras palavras, os ingênuos dotados de elementos de inteligência mais elevados com respeito à média da sua categoria (área Hi), assim como os bandidos com dotes de inteligência (área Bi), e sobretudo os inteligentes (área I) contribuem todos, em medidas diferentes, a aumentar o bem-estar da sociedade. Por outro lado, os bandidos com dotes de estupidez (área Bs) e os ingênuos com elementos de estupidez (área Hs) só fazem acrescentar as perdas àquelas já causadas pelas pessoas estúpidas (área S), aumentando assim o seu nefasto poder destruidor.

Tudo isso sugere algumas reflexões sobre o desempenho da sociedade. De acordo com a Segunda Lei Fundamental, a fração de gente estúpida é uma constante s, que não é influenciada por tempo, espaço, raça, classe ou qualquer outra variável histórica ou sócio-cultural. Seria um grave erro crer que o número de estúpidos seja mais elevado em uma sociedade em declínio que em uma sociedade em ascensão. Ambas sofrem o mesmo percentual de estúpidos. A diferença entre as duas sociedades consiste no fato de que, na sociedade em declínio:
(a) aos membros estúpidos da sociedade é permitido, pelos demais membros, tornarem-se mais ativos;
(b) há uma mudança na composição da população de não estúpidos, com um aumento relativo das populações das áreas Hs e Bs.
Esta hipótese teórica é abundantemente confirmada por uma exaustiva análise de casos históricos. Com efeito, a análise histórica nos permite reformular as conclusões teóricas de modo mais completo e com detalhes mais realísticos.

Seja considerando a era clássica, medieval, moderna ou contemporânea, permanecemos assombrados pelo fato de que todo país em ascensão tem a sua inevitável quota de pessoas estúpidas. Todavia, um país em ascensão tem também um percentual insolitamente alto de indivíduos inteligentes, que buscam manter a fração s sob controle, e que, ao mesmo tempo, procuram ganhos para si mesmos e para os demais membros da comunidade, suficientes para tornar o progresso uma certeza.

Em um país em declínio, o percentual de indivíduos estúpidos é sempre igual a s; todavia, na população restante nota-se, especialmente entre os indivíduos no poder, uma alarmante proliferação de bandidos com uma alta porcentagem de estupidez (subárea Bs do quadrante B na fig. 3) e, entre aqueles não ao poder, um igualmente alarmante aumento no número de ingênuos (área H no gráfico base, fig. 1). Tal mudança na composição da população de não estúpidos reforça inevitavelmente o poder destruidor da fração s de estúpidos e leva o país à ruína.

Apêndice

Nas páginas seguintes, o leitor encontrará um certo número de gráficos que poderá utilizar para registrar as ações de pessoas ou grupos com os quais tem de lidar constantemente. Isto permitirá formular avaliações precisas das pessoas ou grupos em questão e, portanto, adotar uma linha de ação racional em seus contatos.

[Em virtude do caráter digital desta tradução, julgou-se necessário fornecer apenas uma cópia do gráfico base. (N. do T.)]

Extraído daqui: http://leisdaestupidez.blogspot.com.br/

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Morreu Ariano Suassuna

«Sempre que morre um escritor há pelo menos um outro escritor que o inveja. Sente uma inveja perversa e masoquista: quanto alívio, ele não está mais se torturando por não escrever, ele não está mais se torturando por escrever, ele não está mais se torturando por não ser publicado, ele não está mais se torturando por ser publicado, ele não está mais se torturando por não ser lido, ele não está mais se torturando por ser lido. Sim, quando morre um escritor a literatura chora".

http://portuguesdefacto.wordpress.com

Apenas os ecos da minha mente...



Todo mundo falando de mim
Eu não ouço uma palavra do que estão dizendo
Apenas os ecos da minha mente...

(“Everybody’s talking”, trecho da letra da música do mesmo nome de John Barry composta para o filme Midnight Cowboy)

Artigo: João Ubaldo, um amigo perfeito

Artigo: João Ubaldo, um amigo perfeito
Certa vez, ele me enviou um poema, que traduzi quase instantaneamente e agora reproduzo aqui
POR GERALDO CARNEIRO
21/07/2014 7:00 / ATUALIZADO 22/07/2014 16:34
RIO — Tivemos uma amizade fulminante. João Ubaldo costumava dizer que é raro fazer amigos depois de certa idade. Às vésperas dos 40, eu ainda não sabia. Conquistamos uma intimidade rara. Talvez coisa de outras encadernações. Saíamos para beber e conversar algumas vezes por semana, com ou sem pretexto. Concordávamos a respeito de quase tudo. Quando não, bastava trocar dois dedos de prosa.
Tínhamos urgência de conversar sobre todos os assuntos. Certo dia, no apartamento dele, escalamos a Seleção do Mal. Começando por Torquemada, o Inquisidor espanhol, no gol. Para a defesa, sugeri dois zagueiros botinudos, de cujos nomes me esqueci. Para a lateral esquerda, João sugeriu Mao Tsé Tung. Discordei: “Mas o Mao é nosso!” Ele argumentou: “Dezenas de milhões de mortos?” E restabeleceu-se a concórdia. O Mao tornou-se titular absoluto.
No meio de campo, escalamos Pol Pot, Bokassa e mais um ditadorzinho de segunda classe. No ataque, Hitler na ponta-direita, Calígula como centro-avante, para assegurar a criatividade, e Stálin na ponta esquerda. Desta vez, nem discuti sua coloração ideológica. Só faltava escalar o número 10, o cérebro do time. Não me lembro qual de nós sugeriu o nome terrível: o Marquês de Sade.
Ficamos os dois trêmulos, aterrorizados com o poder de fogo da seleção. Felizmente, Berenice, a musa e patroa dele, chegou do consultório e percebeu o nosso drama: “Por que essa cara horrível, meninos?” “Porque acabamos de escalar a Seleção do Mal.” E ela, com a calma dos sábios, decretou: “Pois escalem a do Bem.”
Esperançosos, escalamos Jesus Cristo no gol. De braços abertos. Na lateral direita, São Francisco de Assis; na esquerda, Buda. Não me lembro qual era o meio de campo, mas era tudo gente boa: José de Anchieta, volante moderno, capaz de apoiar o ataque e marcar gol. Se não me falha a memória, o time tinha Ghandi, Zoroastro, Tomás de Aquino. Só faltava o camisa 10. Quando nos ocorreu o nome de William Shakespeare, ficamos aliviados.
Ubaldo era o amigo mais generoso. Adorava dar presentes. Considerava canivete suíço uma das maiores invenções de todos os tempos. E os distribuía às dezenas, dizendo: “Dinheiro pouco eu tenho muito.” A mim me cumulou sempre de lembranças. Mas, no dia seguinte, telefonava para cobrar. Por exemplo: “Já usou o binóculo que eu lhe dei?” Eu explicava que meu escritório fica diante de uma pedra, não havia nada o que espiar. E ele, com autoridade, insistia: “Pois vá até a rua e use o binóculo que eu lhe dei!” E insistia de novo até que eu cumprisse o meu dever de gratidão e lhe relatasse: “Vi um homem passando numa bicicleta.” E ele, exultante: “Viu como é bom o binóculo que eu lhe dei?”
Certa vez trouxe da Alemanha uma caneta branca. Passei a guardá-la como um talismã. Ele trouxe para si mesmo uma caneta igualzinha, só que azul. Dez anos mais tarde, durante uma sessão de trabalho, confidenciamos que as duas canetas haviam se tornado amuletos, sem os quais não nos sentiríamos capazes de escrever. Até hoje a mantenho sobre a escrivaninha, com duas cargas de reserva.
Fui por duas vezes visitá-lo em Itaparica, sua ilha natal. A primeira, para escrevermos uma série de TV. Bolávamos as histórias estirados em duas redes, na casa dele, com grande esforço. Segundo Ubaldo, tanto o itaparicano como os visitantes sofrem os efeitos da radiatividade local, que provoca uma preguiça quase invencível. Felizmente, João Ubaldo a venceu para escrever “Viva o Povo Brasileiro”. Da última vez foi em janeiro, mês de seu aniversário. Uma festa.
Assim como a Rua do Ouvidor ganhou Machado de Assis, Itaparica ganhou o seu cronista. As pequenas façanhas de sua gente se tornaram patrimônio do Brasil e muitos de seus heróis acham que cometeram de fato as peripécias que ele inventou na ficção. Mas tudo isso é arte, pertence à eternidade e será contado em minúcias pelos cronistas do futuro.
De vez em quando, o João tinha surtos poéticos e escrevia poemas em inglês, língua que ele conhecia como raros nativos, mas tinha vergonha de mostrá-los e costumava destruí-los logo depois de escrevê-los. Certa vez, ainda no tempo do fax, ele me enviou um poema, que traduzi quase instantaneamente. Deste, felizmente, o João se afeiçoou e de vez em quando me pedia que o repetisse. E o repito aqui, porque parece um autorretrato desse que, além de ser um dos mais complexos e deslumbrantes brasileiros de todas as eras, era também um amigo perfeito:
Até a morte eu me atormentarei
Pelo que descobri e não encontrei,
Pelo que, pascaliano como sou,
Eu compreendi, e ainda assim maldigo.
Sou o idiota mais perfeito, aliás,
Por feito mais de carne que de gás.
É esse o fado que me leva adiante,
Num mundo para o qual não sou prestante.
Tudo o que tenho as mulheres me deram,
Consolação, razão para existir.
Benditas Berenices, Beneditas.
Também sejam benditos meus amigos,
Pois gosto deles, tenham longa vida,
E até eu mesmo que não a mereço,
Mas que a observo e sei qual é seu preço.


Read more: http://oglobo.globo.com/cultura/artigo-canivetes-outras-artes-de-joao-ubaldo-um-amigo-perfeito-13321314#ixzz38JfgDObs

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Alandelão de La Patrie



Alandelão de La Patrie

João Ubaldo Ribeiro


Não entendo aquele que aprecia o boi. Aqui se criava antigamente muito guzerá, que para mim tem a cara de ordinário, mentiroso, criminoso e cínico. Inclusive, a maioria possui olheiras, mostrando que são perversos devassos de pouca confiança. O sujeito que já se viu no pasto, ou mesmo no cercado, na companhia de um guzerá, esse sujeito sabe que não pode virar as costas nem se desprevenir, porque ele pega, e quem ele pega ele não trata com simpatia. De minha parte, que faço outros serviços, tudo muito geral nesta fazenda, o único boi que se dá bem comigo é o boi Bundão, assim mesmo sem essas alegrias todas, porém com bastante sossego, visto o boi holandês ser pela própria natureza uma criatura fina e de maneiras, está se vendo que é holandês mesmo. Deve ser que na terra dele tem reis e rainhas e desde que boi é boi na Holanda, ele vem sendo educado com finura. Então o boi holandês cobre as vacas dele com muito sentido de sua obrigação, e é até uma coisa bonita de se assistir, porque a vaca holandesa é também educadíssima e então quando Bundão está fazendo um serviço com uma delas até mesmo as visitas gostam de apreciar, porque, no que ele desmonta da vaca, só falta agradecer e ela dar um sorriso. É uma coisa finíssima. Este Bundão, aliás, que está ficando velho, quando eu posso boto uns amendoins no bagaço de cana que ele gosta, que é para ele conseguir desfraldar o instrumento e continuar com emprego fixo -- visto que, no dia que Bundão não for mais espadachim, adeus Bundão, e possa ser até que eu fique com saudades, sendo um boi que, não tendo intimidade com ninguém, me trata parecendo que é formado pelo menos em ginásio. Se um dia eu comer uma buchada dos buchos de Bundão, vou comer com desgosto. Eu como porque nesta vida é um comendo o outro e é melhor que a gente coma o boi do que o boi comer a gente, é uma questão política, mesmo porque o boi não fala.

Antigamente não era igual a hoje, quer dizer, não era esta organização toda. O touro guzerá encarregado de enxertar as vacas era um absurdo. Atendendo pelo nome de Nonô de Bombaim, esse touro guzerá ficava ciscando no meio das vacas da raça dele e, quando uma facilitava, até parecia que ele estava pagando e tinha direito a qualquer coisa, a vaca nem achava tempo para fazer a posição, porque ele já vinha de lá soltando fumaça e completamente armado e uma coisa que eu agradeço a deus é que Deus não me fez eu nascer vaca daquele guzerá. Inclusive, não foi uma nem duas vezes que os vaqueiros tinham que acertar a entrância correta, porque ele não queria saber, ia pincelando onde achasse quarto de vaca. Tipo do boi atrasado, rei da ignorância. Quando eu me lembro de Nonô de Bombaim tratando as vacas, fico destremecendo, a vaca sofre muito. Quando o sujeito compara o tratamento que Bundão dá às vacas holandesas com o tratamento que Nonô dava às vacas guzerás, aí é que o sujeito vê a diferença entre uma pessoa loura e educada como Bundão e uma pessoa sem princípios e amulatada, como Nonô. É por essas e outras que, na próxima encarnação, se Deus quiser e eu merecer, eu volto branco e bem educado. Não quero fazer como Nonô, que chega e vai lascando a vaca toda, se bem que ele é muito bem admirado em toda a redondeza e diz o povo que até hoje tem mulheres que, no entusiasmo de brincar de bicho de duas costas, elogiam o homem dizendo "dá nela, Nonô!", mas considero essas mulheres todas umas vacas guzerás, isto é o que considero, pois que sou a favor do carinho, porradas só quando imploradas ou merecidas verdadeiramente.

Entretanto, com nonôs e bundões e mais uns quanto outros reprodutores de alguma fama nestas terras, as coisas sempre foram dentro do normal. O galo às vezes parece que está conversando com a sombra ou está discutindo eleições ou qualquer coisa, quando que de repente sai com grande brilhantismo e vai bicando as galinhas e virando na direção do sobrecu e assim ele faz o trabalho todo em coisa de cinco minutos, igual a uma faísca. Os ovos sucedentes são pardos, não claros, galados, não pecos, e fortíssimos para a saúde, ou senão saem pintos e todas as galinhas prosseguem galinhando como quis Nosso Senhor. Assim, o calango possui dois vergalhos, um na direita outro na canhota, ficando bem municiada qualquer calanga que venha pela direita ou pela esquerda, sendo que o calango só pega uma calanga de cada vez, não se aproveitando de que pode pegar duas. Porque não é uma questão de vaidade, é um problema de não perder tempo, pois que, se a verdade é que o calango tem muitas moscas para comer, tem também muitos outros bichos desejosos de comer o calango, de forma que não se pode facilitar. O beija-flor trepa nos ares, às vezes de passagem, às vezes cumprimentando e aproveitando, visto o coração do beija-flor zumbir e ele morrer cedo, beijando flores e o coração zumbindo. As jegas e as éguas apreciam a cobertura e há casos de jegas que ficam dando uns coicezinhos no jeque a tarde toda, até conseguirem, e aí rangem os dentes dão umas babadinhas e ficam grandemente admiradoras do macho, se ele soube responder bem àqueles coicezinhos. O cágado ronca em cima da cágada, que tem toda a paciência, porque a construção deles não facilita e dever ser por isso que o cágado ronca nessas horas. O pato e o porco aplicam roscas e tem quem diga que a rosca é para estontear a fêmea, que fica olhando, olhando, até se enroscar completamente. O gato apresenta espinhos que sangram a gata na puxada, sendo porém o sangramento necessário para a gata emprenhar. O louva-deus fica parado e, antes mesmo que a louva-deusa esteja pronta, já vai mastigando o macho e ele cabe todo na barriga dela. Isto tudo se vê por aqui e muitas mais coisas, desde as lagoas com seus sapos e jias se casando pelas águas, até os barulhos dos bichos maiores. Foi assim que foi feita a natureza e, em cada uma juntada, está se sentindo a força.

Pois então, nestes tempos modernos, estamos desnaturados. Embora eu, que não gosto de boi, não estivesse muito sabendo até que tudo começou a ser modificado, recebemos diversos doutores e tudo mais. E não foi assim que, depois de muitos anúncios e forte nervosismo, levamos a gaiola grande para a estação de trem, parecia até uma festa só faltando banda de música, para receber o grande touro charolês francês, que aqui tomou o nome, mesmo antes de chegar, de Alandelão. Todo nome francês termina em ão, e o nome era para ser Napoleão, que foi outro francês retado, que invadiu a Inglaterra, escarreirou D. João VI, enfim fez o maior cacete e não perdoava nada. Mas se preferiu Alandelão, que é um artista da França muitíssimo cotado e, pelo que eu ouço falar desse Alandelão, era para as vacas aqui estarem grandemente festejando.

Agora, esse Alandelão daqui, na hora que eu vi, achei logo que era um animal bastante triste, todo escuro assim, parecendo de luto. No começo, pensei que era da natureza do boi francês, porque se sabe que o francês aprecia a safadagem mas tudo na maior decência, não é como as coisas de Nonô de Bombaim. Mas, mesmo assim, como é que esse boi podia ser tão triste, sabendo-se que de agora em diante vai ficar instalado igual a um monarca, com massagem, comidinha, alisamento e vitamina? E, se as vacas para ele trabalhar não eram vacas francesas da maior fineza, também não eram de se jogar fora, inclusive sendo começo de verão e estando a maior trepação em todas as partes da fazenda, até os motucos soltando a lenha nas motucas, os lacraios nas lacraias e assim vai, para não falar em outros, como os preás, que todo mundo sabe que quando não estão comendo estão afogando o ganso, seja inverno ou seja verão. E às vezes o sujeito se veste de preto assim mas não quer dizer nada, haja visto padre Barretinho, que Deus haja, cala-te boca.

Um emprego como o desse boi muitos de nós passamos a vida rezando para encontrar e agora ele chega todo triste, quase uma antipatia. Aquele bicho do tamanho de um elefante atarracado, todo de preto e com uma cara jururu que fazia pena, quando o natural é que estivesse sacudindo o rabo, babando um pouco e preparando o ferramental. Mas é assim que se vê como o animal também tem a sua inteligência, porque esse Alandelão já estava perfeitamente conhecedor do que ia acontecer e era por isso que não se alegrava e tinha toda a razão, coitado.

Quando eu soube, tomei um choque. Já tinha uma semana ou duas que Alandelão estava no seu apartamento, todo ventilado e cheio de nove-horas, inclusive um aparelho americano para as moscas não incomodarem ele, e então eu, que passava em busca de uns baldes e umas gamelas, perguntei quando era que a folga dele ia acabar e quando é que ele ia sair para cobrir umas vacas.

-- Com essa fama toda, está todo mundo querendo apreciar -- disse eu. -- Deve ser uma coisa de muita competência.

-- Mas ele não vai cobrir vaca nenhuma -- respondeu Dr. Crescêncio, que é uma espécie de engenheiro de vaca, que trabalha aqui dando orientação e é formado em vaca na faculdade.

-- Ô, e o bicho está aqui para quê? Ele não é reprodutor?

-- Um animal desses você acha que a gente ia deixar esperdiçar direto com as vacas? Não, senhor! Tudo o que sai dele vale ouro. A gente extrai, bota no gelo e depois enfia nas vacas com uma seringa. E aí se aproveita tudo.

Nisso, com a cara meio saindo pela abertura, eu vi que Alandelão já devia saber brasileiro, ou então ter estudado na França, porque entendeu a conversa toda e ficou ainda mais de beiço pendurado do que estava antes, uma infelicidade de cortar o coração. Indaguei como era que se extraía o material, se tinha de enfiar uma agulha de injeção nos quibas do coitado do animal, mas o Dr. Crescêncio disse que não. Que, de tantos em tantos dias, o pessoal encarregado ia lá e fazia a manipulação.

-- Como é essa manipulação?

-- Se você quiser, pode assistir, que daqui a pouco nos vamos coletar.

-- O boi não se aporrinha, não, doutor?

-- Que nada, ele está acostumado.

E, de fato, Alandelão, se não ficava entusiasmado, também não criava dificuldade, estava se vendo que era treinado na profissão. Ele via a turma de manipulação e já ia abrindo as pernas e olhando para o outro lado e ai aguardava a extração, tudo muito despachado, sem nem um suspirinho. Naquela hora, vendo um boi tão prestigiado, cheio de medalha e tudo, sujeito a ser chamado pelos outros de reprodutor donzelo, dava bastante pena. No finzinho, os manipuladores ainda davam uma espremidinha, mas ele não tugia nem mugia. Ficava ali passando humilhação com a melhor cara possível. Como é que uma criatura pode viver nessa situação -- ainda mais um francês?

E, inclusive, pode ser até que na França a profissão dele seja mais respeitada, mas aqui, nesta esculhambação, não demorou e ele pegou diversos apelidos -- cinco-a-um, mangueira-fria, desconhece-vaca, come-vento, cassetete-gelado, pinga-na-cumbuca, couriça-de-mão, uma porção mesmo --, que a gente ria mas sentia que não estava direito zombar de uma infelicidade do destino alheio.

Foi assim que tivemos o plano de fazer um benefício a Alandelão, benefício este com a vaca Flor de Mel, pé duro porém forte de ancas, boa envergadura e vaca já com muita experiência de vida, inclusive havendo sido, segundo muitos, amante do Nonô de Bombaim e diz o povo que os dois comiam uns pezinhos de liamba, conhecida por outros como fumo-de-angola, aliás maconha -- o que é que estamos escondendo --, que aqui nasce feito mato e não deixa de haver quem faça um fumeirozinho, enfim, diz o povo que os dois comiam uns pezinhos e ficavam na maior safadagem, isto antes de Nonô ter pegado aftosa numa farra e ter morrido velho e aftoso e desestimado por todos em geral. Está se reconhecendo, então, que Flor de Mel não era nenhuma mocinha, mas, em primeiro lugar, sabe-se que o francês gosta de velha. E, segundo, Flor de Mel estava sempre disposta, coisa que não se pode dizer de todas a vacas, mesmo elas sendo vacas ou talvez por isso mesmo.

Então eu e Emanuel e mais o menino Ruidenor combinamos deixar Flor de Mel no cercado pequeno, que fica perto do apartamento de Alandelão e, de noite, a gente ia lá e soltava o francês. E dito e feito, até com luz de lua para completar. Quando a gente abriu a porta, o bicho tomou um susto, não estava acostumado. E não queria sair de jeito nenhum, mesmo a gente explicando. Emanuel achou até que a gente devia dar uns piparotes lá na estrovenga dele para ver se ele se animava, mas todo mundo ficou com medo de que ele achasse que algum da gente era manipulador e quisesse completar o serviço todo e um boi deste tamanho a pessoa deve procurar não contrariar. Afinal, tanto a gente fez que o bicho foi saindo para o cercado, meio estranhando. Nisso Flor de Mel, que aí foi que eu vi que é mesmo uma velha assanhadíssima, abriu logo as ventas para o lado de Alandelão e foi chegando, foi chegando, mas o boi nem deu sinal.

-- Será que tem pouco tempo que fizeram uma manipulação e ele esta desfraquecido? -- perguntou Emanuel.

-- Que nada, que nada! -- disse Ruidenor, que estava doido para ver a finalização toda. -- Bote o bicho para perto, bote o bicho para perto!

Não sei quantas mil arrobas pesa um desgraçado daqueles, mas a gente foi puxando e só "vai, Alandelão", "vai, Alandelão" e Flor de Mel ali dispostíssima e só faltou a gente botar um macaco de caminhão debaixo do infeliz para ele levantar, mas não tinha jeito. Até que, na hora já de todo mundo desistir, ele deu uma olhada para um lado, uma olhada para o outro, uma olhada para mim, outra olhada para Emanuel e aí fez aquele movimentozinho fraco para subir na vaca, que mais que depressa ficou na posição certa, que a diaba não tinha desistido de papar o francês.

-- Lá vai ele, lá vai ele! Tenha fé, Alandelão!

Mas parece que o boi francês é um boi de pouca fé, porque, bem no meio daquela subidinha fraquinha, que ninguém nem estava acreditando que ia dar na altura de Flor de Mel, Alandelão revirou os olhos, fez um barulhinho na garganta e se despejou todo no chão.

-- Vigessantíssima, que deve ter para mais de setecentos mil contos aí desparramando no chão! -- disse Emanuel. -- Vamos levar esse boi lá para dentro!

E, de fato, numa situação dessas, só podia ser que a gente tinha de levar o bicho de volta, ele com a cara envergonhada e Flor de Mel aborrecidíssima e, pelo visto, com muita saudade de Nonô de Bombaim. No outro dia, bico calado, por causa do esperdício da matéria-prima de Alandelão. E parece mesmo que ninguém notou, porque nós três ficamos nervosos na hora da manipulação seguinte, mas Alandelão trabalhou do mesmo jeito e ninguém se queixou da produção dele. Só nós três é que podíamos notar que, quando ele via a gente, ficava todo sem graça, mas a gente compreendeu e respeitou, de forma que ninguém falou nada. E, de qualquer maneira, depois se descobriu que Alandelão era uma sociedade, porque ninguém tinha dinheiro para comprar ele sozinho, e aí ele passava produzindo numa fazenda e depois em outra e outra e assim por diante. E aí chegou o dia de botarmos ele na mesma gaiola e levarmos ele para o trem. Não se pode dizer que ele deixou amizades aqui, mas também não fez desafetos. E nós três estavam todos sabendo que ele nasceu para a profissão dele, só sabia trabalhar daquele jeito, tinha especialização, que é que se ia fazer. Assim mesmo, Emanuel passou a mão na cabeça dele na hora do embarque e disse: "Deus que lhe dê uma boa mão, Alandelão". E o dono aqui da fazenda também viu, mas nem perguntou, todo satisfeito com o dinheiro que ganhou com o trabalho do francês. Quando o trem saiu, ele cantou baixinho:

-- Alandelão de la Patri-i-i-i-e!

Ele pensou que eu não entendi, mas eu entendi. Ele cantou um pedaço do hino da França, somente trocando o Napoleão pelo Alandelão. Em francês, quer dizer "Alandelão de nossa terra". Lá deles.


Texto extraído do livro "Livro de Histórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1981, pág. 11.

Viva João Ubaldo Ribeiro!

João Ubaldo Ribeiro (1941-2014)

«Explicar que sou um grande homem e não digo que sou uma grande mulher pela mesma razão por que não existe onço, só onça, nem foco, só foca, tudo isso é um bobajol de quem não tem o que fazer ou fica preso a idiossincrasias da língua, como aquelas cretinas feministas americanas que queriam mudar history para herstory, como se o his do começo da palavra fosse a mesma coisa que um pronome possessivo do gênero masculino, a imbecilidade humana não tem limites. Sou um grande homem fêmea, da mesma forma que os grandes homens machos são grandes homens machos, fica-se catando picuinha porque o nome da espécie é por acaso masculino e não neutro, como é possível que seja em alguma outra língua, como se a gramática resolvesse alguma coisa nesse caso. Explicar isso, não existem grandes homens e grandes mulheres, existem grandes homens machos e grandes homens fêmeas. Não há nada mais ridículo do que galeria de grandes mulheres isso e aquilo, fico morta de vergonha. A espécie é humana, como Panthera uncius, Panthera leo, um onça, no feminino por acaso, outro leão, no masculino por acaso, questão de língua, exclusivamente. Explicar isso como quem explica a um marciano. A um terráqueo. Escuta aqui, terráqueo, deixa de ser débil mental.»
Trecho do livro A casa dos Budas Ditosos