quinta-feira, 27 de março de 2014

As Mortes Sucessivas, de Adélia Prado


Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu, me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada:
meus seios conformavam dois montículos
e eu fiquei muito nua,
cruzando os braços sobre eles é que eu chorava.
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos,
parentes, que me lembrassem sua fala,
seu modo de apertar os lábios e ter certeza.
Reproduzi o encolhido do seu corpo
em seu último sono e repeti as palavras
que ele disse quando toquei seus pés:
´deixa, tá bom assim´.
Quem me consolará desta lembrança?
Meus seios se cumpriram
e as moitas onde existo
são pura sarça ardente de memória.

Poema integra o livro "Bagagem", de Adélia Prado, publicado pela Editora Record que reedita toda a obra da poeta.

PS: Em 2006, muita gente chorou quando a escritora mineira Adélia Prado leu, pela primeira vez, "As Mortes Sucessivas" para a platéia da 4.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).  Momento inesquecível e emocionante.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Oscar 2014: a força de "Gavity"



O diretor mexicano Alfonso Cuarón ganhou o prêmio de melhor diretor, mas seu filme, "Gravity", não levou a estatueta de melhor filme. Não faz sentido. "Gravity" representa tudo aquilo que o Cinema enquanto arte deve ser: ambicioso, belo, provocante, criador de sonhos, senhor de ilusões. Não foi por acaso que ganhou o Oscar de melhor edição de som com seus silêncios.

“Gravity” é uma raridade com planos longos e sequências do espaço em um azul tão infinito que parece claustrofóbico. É um filme com grandeza épica. Sandra Bullock está ótima. George Clooney também. Em resumo: ainda bem que, mesmo sem o prêmio de melhor filme, “Gravity” levou sete estatuetas incluindo melhor fotografia, melhor montagem, melhor banda sonora original, melhor mixagem de som, melhor edição de som e melhores efeitos visuais.

“12 Anos Escravo” venceu o Oscar de melhor filme, atriz coadjuvante (Lupita Nyong’o) e melhor roteiro adaptado. “O Clube de Dallas” conquistou melhor maquiagem e dois dos grandes prêmios de interpretação masculina: Matthew McConaughey (melhor ator) e Jared Leto (melhor ator coadjuvante). Jared fez o melhor discurso da noite, tendo feito referência oportuna à situação na Ucrânia e Venezuela. Cate Blanchett foi a Melhor Atriz, por “Blue Jasmine”. “Frozen – O Reino do Gelo”, da Disney, venceu na categoria de melhor filme de animação e na de Melhor Canção Original. O filme italiano “A Grande Beleza” venceu na categoria de Melhor Filme Estrangeiro e “20 Feet from Stardom” na de Melhor Documentário.Ainda na festa, cabe registrar a homenagem aos heróis do cinema e o tributo aos 75 anos de “O Feiticeiro de Oz” (1939).

Gostei muito da carismática e atualizada Ellen DeGeneres. Dois grandes momentos: a selfie com Meryl Streep e outras estrelas para bater o recorde de retweets, objetivo plenamente alcançado. Hoje, a foto já contava com quase três milhões de retweets, um recorde. Outro grande momento: a divertida e inesperada entrega de pizzas em pratos de plástico. Rsrsrsrsrsrsrsrsrs.....

domingo, 2 de março de 2014

Coisa de gênio



FÁBIO PORCHAT

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Poste

02 de março de 2014 | 2h 13

 

FÁBIO PORCHAT - O Estado de S.Paulo

Amarrei no poste mesmo! O cara tava roubando uma idosa na minha frente. Deu um soco na barriga dela. Uma senhora de 80 anos. Pra que isso? Me deu uma raiva daquele moleque. Na hora, dei-lhe uma porrada, ele caiu no chão e eu amarrei mesmo. A polícia não faz nada. Alguém precisa tomar alguma atitude. E as pessoas ao meu redor aplaudiram, hein. Claro, alguém que finalmente teve a coragem de dar a cara a tapa. Cadê os direitos humanos pra cuidar da velhinha que quebrou uma costela? Aí se esconde, né? Só que um babaca resolveu vir tirar satisfação. Veio com o papo de que eu não podia fazer isso. Amigo, fica na tua! Vai se meter com a sua vida, otário! Eu não tô aqui interferindo na vida de ninguém, tô fazendo a minha parte! O cara tentou libertar o bandido, não teve jeito: poste nele. Amarrei o idiota no poste. Do ladinho do amiguinho ladrão dele. Não gosta tanto? Conversa aí então, seu merda!

O cara da CET veio entender o que tava acontecendo, chegou querendo meter uma de dono da lei... Queridão, eu conheço tua laia. Fica multando geral só pra poder ganhar comissão em cima do cidadão de bem. Eu tenho nojo dessa indústria da multa. Eu já tava meio que de ovo virado, o cara veio crescendo pra cima de mim, não tive dúvida: poste! O mundo não precisa desse tipo de gente, entendeu?

Uma mulher, acho que irmã do cara da CET, veio tentar ajudar. Sei, vestida com aquela roupinha de puta vem querer ajudar? Tá na cara que faz programa. E se passa uma criança ali e vê aquilo? Uma mulher da vida balançando o rabo daquele jeito? Poste nela! É claro que por ser mulher, veio uma gente desavisada tentando ajudar.

O cara da banca, que eu já vi vender cigarro pra menor, meti no poste em 30 segundos. Um camelô que não tinha nem nada a ver com a história foi pro poste porque vender DVD pirata é crime.

Mendigo bêbado, motorista que parou na faixa de pedestre, uma menininha de uns 6 anos que tava respondendo à mãe como se fosse a rainha do Egito, a mãe imbecil que deixa uma filha falar dessa forma, gente pobre, preto, nordestino, veado, foi indo um a um, tudo pro poste. Meu poste já tava parecendo uma árvore de Natal humana, só que com gente da pior espécie. Era eu mostrando pro mundo que aqui pode ser um lugar melhor, eu saí da minha passividade para dar paz à sociedade.

Foi aí, no meu auge, que me prenderam no poste. Do nada. Sem ninguém me falar nada, veio um pessoal, começou a me dar porrada e com um cadeado de bicicleta prenderam meu pescoço. Aí você vê a barbárie humana. Você querendo ajudar e transformar o mundo e a estupidez vem e vence mais uma vez. Agora são 4 da manhã, todo mundo foi solto do poste e só tem eu aqui, esperando chegar o bombeiro com o maçarico. Esse mundo não tem mais jeito não.