domingo, 11 de abril de 2010

"TUDO O QUE TEMOS É O PRESENTE"


"Se é jovem em anos mas já cansado em espírito, já a caminho de se transformar num autómato, pode fazer-lhe bem dizer ao seu chefe - entredentes, claro - "Vai-te foder, Jack! Tu não és o meu dono". Se você consegue assobiar, se se excita com um rabo atraente ou um lindo par de mamas, se consegue apaixonar-se uma e outra vez, se consegue perdoar aos seus pais o crime de o terem trazido ao mundo, se está satisfeito por não ir a lado nenhum, viver cada dia à medida que vem, se consegue perdoar e esquecer, se consegue evitar tornar-se azedo, rabugento, amargo e cínico, homem, você já tem meio caminho andado!
São as pequenas coisas que contam, não a fama, o êxito ou a riqueza. No topo, há muito pouco espaço enquanto que em baixo há muitos como você, não há enchentes nem ninguém para o provocar. Não pense, nem por um momento, que a vida de um génio é feliz. Longe disso. Seja grato por ser ninguém. (...) Com raras excepções, as pessoas não se desenvolvem nem evoluem; o carvalho permanece um carvalho, o porco um porco e o asno um asno. (...) Tudo o que realmente temos é o presente, embora poucos o vivamos. Não sou pessimista nem optimista. para mim o mundo não é nem isto nem aquilo mas todas as coisas simultaneamente, e a cada um segundo a sua visão. (...)
Verdadeiramente decrépitas, cadáveres ambulantes, por assim dizer, são as pessoas de meia idade, os homens e as mulheres da classe média que estão presos nas suas rotinas confortáveis e julgam que o status quo durará para sempre ou então têm tanto medo de que assim não seja que já se retiraram para os seus abrigos mentais enquanto esperam a catástrofe. (...)
O que aflitivamente falta no mundo actual é grandeza, beleza, amor, compaixão e liberdade. O tempo dos grandes indivíduos, dos grandes líderes e dos grandes pensadores já passou. No seu lugar estamos a criar embriões de monstros, assassinos, terroristas: a violência, a crueldade e a hipocrisia parecem inatas. (...)
Quem se leva a sério está condenado".

Henry Miller em "Viragem aos Oitenta", tradução da Fenda.

domingo, 31 de janeiro de 2010

HUMOR NEGRO DE DEUS



Quando Deus subiu aos ceús
Disse a todos os mortais:
fodam-se vocês agora,
que a mim já não fodem mais...

Esta quadra foi extraída de estudo sobre folclore de Portugal

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

VAMOS CELEBRAR A VIDA!


Recado ao Senhor 903 - Rubem Braga

Vizinho,

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão.

O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros.

Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 - que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua.

Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo.Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21 :45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.

...Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".

E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.